Neves de Boston

Capitulo 10 - Neves de Boston

Período Coberto: 1964 a 1968.

Locais: Boston, EUA.


            Nos anos 1960, muitos jovens no Brasil estavam enamorados pela ideia do comunismo, como havia acontecido na Europa após a Primeira Guerra Mundial. Suponho que todos pensaram que esse era o caminho para justiça social - embora eu veja isso como uma teoria equivocada, que ainda hoje está sendo contestada. Mais pessoas no mundo sofreram sob as bandeiras da religião e dos credos políticos do que por causa de pestilências. Mas não quero entrar aqui em pesquisas numéricas reais.

Por outro lado, desde muito jovem fui instruída por meu pai nas virtudes do capitalismo e do livre comércio. Fico feliz em dizer isto. Meu pai e eu conversávamos muito sobre esses assuntos enquanto eu ainda morava em Belo Horizonte. Eu era muito próxima dele e, consequentemente, aderi a muitas de suas crenças sobre os mais variados assuntos, como religião, política e princípios. Ele era realmente muito rigoroso. Na Inglaterra, ele teria sido descrito como um verdadeiro vitoriano ou puritano, no que dizia respeito à sua família. Nós tínhamos que nos manter retos e corretos, e todos os aspectos do bom comportamento e de boas maneiras eram exigidos, especialmente das meninas.

Meu pai sempre tinha que saber quem eram os pais das minhas amigas.

Mais tarde, namorados tiveram que ser aprovados por ele, e muito poucos foram aceitos. Minhas amigas da época lembram de tudo isso, e recordam dele com carinho, por ser sempre gentil com elas. Meu segundo marido, Albert, que realmente trabalhou com meu pai por um tempo, teria sido aprovado porque meu pai o via como uma pessoa de bom caráter, trabalhador e de uma família local. Isso é o que era preciso. Ele dizia:

"Case suas filhas com os filhos de seus vizinhos".

As universidades de Minas Gerais nos anos 1960, assim como em outras partes do país, criaram campos de militância comunista. E como meu pai era conhecido localmente por sua riqueza, seus três filhos provavelmente não seriam bem-vindos nelas. Eu já me sentia em destaque por atenção indesejada em minhas escolas, embora eu conseguisse ignorá-lo. Mas achei a ideia de mais intensa ou agressiva inspeção na universidade bastante assustador.

Lembro-me que, às vezes, até meus professores me chamavam de Luciana. Como esse não era o meu nome, mas o nome do meio do meu pai no feminino, percebia a mensagem de que significava a filha do Dr. Luciânia. Então, quando chegou a hora de eu escolher uma universidade, disse a meu pai que não me exporia a mais assédio e queria continuar meus estudos na América do Norte.

Eu via os Estados Unidos como um maravilhoso paraíso capitalista e certamente o lugar certo para mim. É possível que em grandes cidades brasileiras, como Rio e São Paulo, estudantes de famílias ricas não se destacassem tanto, mas em Belo Horizonte certamente era assim. Mais tarde, aliás, quando meu irmão e minha irmã atingiram a idade necessária, eles até optaram por aulas particulares, em vez de continuarem sua educação em escolas locais.

Nunca aceitei renunciar a nenhum dos meus direitos, o que definitivamente incluía ir a uma universidade onde seria julgada de acordo com a minha competência, não pelo meu status socioeconômico. E nunca encontrei um desafio grande demais para minha grande medida de determinação. Por isso, resolvi abordar a tarefa de ser aceita em uma universidade americana com o estado de espírito de uma vencedora - posso fazer –, e me dediquei inteiramente aos estudos até alcançar meu objetivo. Ser aceita como estudante de uma universidade americana era definitivamente o meu sonho, e quando lá cheguei, fiquei tão feliz por fazer parte do sistema que adorei cada momento.

Eu levei minhas obrigações muito a sério, nunca perdi uma aula e não tive tempo de me socializar nos primeiros dois anos. Percebi que, no princípio, estudantes estrangeiros tinham um fardo adicional, porque trabalhávamos em idioma diverso do nosso, portanto para competir com os americanos tive que trabalhar muito mais do que eles. Estudei incansavelmente e nunca falhei em nenhum assunto, embora, às vezes, o achasse muito exigente. Mas nem por um momento me arrependi da minha decisão. Este foi, portanto, um período extremamente feliz da minha vida, porque enxerguei o que estava fazendo como uma grande conquista.

            Enquanto estava na universidade nos EUA, eu me correspondia regularmente com minha mãe, que me mantinha informada sobre tudo o que acontecia em casa, e com minha prima Sandra Giffoni também. Sandra é filha da irmã mais nova de minha mãe, tia Branca. Sandra e eu brincamos juntas desde que nascemos, ela era apenas um pouco mais nova que eu, e frequentamos a mesma primeira escola, o Sacré-Coeur de Jesus.

Em uma carta para mim, Sandra certa vez contou como ela foi com uma amiga a algum instituto americano, onde estudantes faziam testes para obter bolsas de estudos nos EUA. Este era o American Field Service. Ela disse que sua amiga havia tentado convencê-la a fazer o teste, mas achava que seria um exercício inútil, porque seus pais não seriam capazes de pagar as taxas de contribuição necessárias. No entanto, quando ela lá chegou, decidiu tentar, uma vez que lhe foi explicado que ela não teria qualquer obrigação. Cerca de uma semana depois, Sandra ficou espantada ao saber que tinha conseguido, enquanto a sua amiga, não. Não fiquei nem um pouco surpresa ao saber disso, porque sabia que Sandra era uma pessoa inteligente e muito dócil.

O AFS Intercultural Program era uma organização internacional, não governamental e sem fins lucrativos, que oferecia oportunidades de aprendizado intercultural.

 

Fundador e Inspetor-Geral do AFS A. Piatt Andrew e Inspetor Geral Assistente Stephen Galatti,

na sede do AFS em Paris, França, 1917. Fotografia por H.C. Ellis.

 

 

O AFS original começou em 1915, logo após o início da Primeira Guerra Mundial, como Serviço de Campo de Ambulâncias da América. Posteriormente, foi transformado de organização de ajuda humanitária em tempo de guerra em um intercâmbio internacional de estudantes da escola secundária. Essa organização de aprendizado intercultural tinha uma visão nobre, que era ajudar a construir um mundo mais pacífico, promovendo a compreensão entre as culturas.

Respondi prontamente à carta de Sandra incentivando-a a aproveitar a oportunidade e anexei uma nota de 100 dólares para ajudá-la a pagar as taxas. Em 1963, isso valia muito mais do que agora. Enquanto isso, Sandra também contou à minha mãe, que se ofereceu para pagar todas as despesas e, o mais difícil de tudo, convencer os pais de Sandra a deixá-la viajar. Sandra e minha mãe sempre foram muito próximas. De fato, elas eram semelhantes de muitas maneiras, tanto fisicamente quanto de temperamento.

Embora tivéssemos crescido juntas, sempre houve uma enorme diferença em nosso status econômico. Meu pai era muito rico e os pais da Sandra viviam de maneira muito simples, pois seu pai era um funcionário público. Por esse motivo, meu pai pagou para que ela frequentasse o Sacré-Coeur, e Sandra costumava usar minhas roupas de segunda mão. Ela costumava dizer que tinha o corpo de uma pessoa pobre, pois tudo servia nela!

No início de setembro de 1963, Sandra foi morar por um ano com uma família no estado de Minnesota. Essa foi a maior aventura de sua vida, pois ela nunca havia estado fora do Brasil. Eu estava na época estudando no Rosemont College, e durante as férias da Páscoa de 1964 fui visitar Sandra. Foi durante essa visita que ouvimos pelo rádio sobre a revolução no Brasil.

A família americana de Sandra gostou muito dela e eles permaneceram para sempre com laços amigáveis. Foi como resultado dessa experiência que Sandra se tornou professora de inglês. Ela agora é dona de uma escola de inglês em Belo Horizonte e, por muitos anos, acompanhava grupos de estudantes aos EUA. Constata-se, portanto, que Sandra foi um caso muito bem-sucedido da tentativa americana de Entente Cordiale.

Em junho de 1964, mudei do Rosemont College para o Boston University Summer School, e, no outono, iniciei estudos em tempo integral de meu curso de Administração de Empresas. Nos dois primeiros anos, morei nos novos dormitórios em Bay State Road, onde dividi um quarto com outra garota. O piso térreo desse edifício estava aberto aos visitantes, assim como a cafeteria no porão. Mas, a partir do primeiro andar, apenas as meninas residiam, sem permissão de acesso para homens. E estávamos a somente dois quarteirões do prédio da School of Business, situado na avenida Commonwealth.

Em Massachusetts, a natureza me encantou em todas as estações. No outono, as variedades de árvores que se transformavam em vários tons de vermelho, amarelo e laranja eram extraordinariamente belas. Folhas são verdes por que contêm clorofila. Quando esse pigmento é abundante em suas células, como ocorre durante a estação de crescimento, a cor verde da clorofila domina e máscara as cores de qualquer outro pigmento que possa estar presente na folha.

No final do verão, à medida que a luz do dia encurta e a temperatura cai, as veias que transportam líquidos para dentro das folhas gradualmente se fecham, e a clorofila começa a diminuir. Muitas vezes, as veias ainda ficam verdes depois que seus tecidos mudaram para os tons amarelo e laranja causados ​​por carotenoides.

            Isso é comum entre muitos seres vivos, e é o que dá a cor característica ao milho, canários, algumas flores e girassóis, além de gemas de ovo, cenouras, bananas e laranjas. Seus brilhantes amarelos e laranjas também tingem as folhas de espécies de madeira de lei, como nogueira, freixo, bordo, bétula, sicômoro e sassafrás, entre outras.

 

Esquerda: minha universidade – Boston University.

Direita: a rua onde eu morava – Bay State Road.

 

Após a temporada de outono, dominada por seus ricos tons de vermelho, veio outra, tão diferente e especialmente característica de Boston, e que era completamente branca, suave e silenciosa. Foi a que eu mais gostei. Era a época de recolher-se ao calor e aconchego de nossas casas. Depois de todos esses anos, ainda anseio pela neve. Sinto tanta falta das neves de Boston! Pois após os três gloriosos meses de outono vermelho e amarelo, caía uma grande quantidade de neve. Eu achava que a cidade ficava tão bonita sob aquela camada branca sobre os parques e ruas. E o rio Charles ficava esplendidamente lindo quando nevava. Eu podia vê-lo de minha janela enquanto estudava. De certa forma, a tranquilidade desse cenário lembrava-me de meu quarto na casa dos meus pais, a Chácara. Lá eu também adorava ver a chuva cair contra a janela do meu quarto enquanto estudava. Aquela janela dava para a grande árvore, a minha favorita, a Paineira. A Chácara foi meu primeiro paraíso, e Boston, com a neve, foi meu segundo.

Existem várias espécies conhecidas dessas árvores no Brasil, mas a mais conhecida é a Ceiba Speciosa Ravena, indígena das florestas do Brasil e da Bolívia. Foi inicialmente descrita em 1828 por Auguste Saint Hilaire, e mais tarde pelo capitão Sir Richard Francis Burton (19 de março de 1821 - 20 de outubro de 1890). Sir Richard menciona a árvore Bomtax em seu livro Exploração das terras altas do Brasil, publicado em 1869, com um relato completo sobre as minas de ouro e diamante. Neste livro, ele menciona ter conhecido em Minas Gerais o Dr. John Lucie Dayrell, avô inglês da minha avó Teresa Dayrell.

Quando a primavera chegava, surgiam folhas verdes claras, a princípio tímidas, mas cada vez mais ousadas. Uma por uma, elas apareciam lentamente até que pequenas flores também desabrochassem, acrescentando todos os tons possíveis a uma paisagem exuberante. O destino geralmente determina onde devemos morar e, no meu caso, eu poderia ter sido aceita para a universidade em outro lugar. Mas a vida em Boston definitivamente deixou uma marca na minha personalidade. Ainda sinto falta da neve nas cidades como era em Boston, o que não é o mesmo no campo ou nas montanhas.

 

As neves de Boston

 

Quero a neve!

Enchia a visão  

E o coração.

Quero de volta

Dias de Boston

Que se foram.

 

Sinto falta!

Não esqueci

 Flocos brancos

Caindo e dançando

Fora da janela

Em frente ao rio.

 

Barcos carregam  

Cargas pesadas

A neve circula

Em volta contínua.

Quero de volta,

Dias de neve!

 

É a memória,

Tempos de sonhos  

De grande amor,

Pelo qual suspiro,

Que foi embora  

Mas não morreu.

 

Não esqueço

Aqueles dias 

E as intensas

Emoções de amor

E felicidade

Daqueles tempos.


Apesar de amor

Agora ter,

A mente volta

Ao passado

O primeiro amor

Vivo dentro de mim.

 

© A.L.P. Gouthier, 2013

 

  

Esquerda: meu pai e Anastásia, Natal em casa, em 1963.

Coleção de fotos de A.L.P. Gouthier

Centro: outono em Boston. Direita: inverno em Boston.

 

Uma vez, minha mãe foi me visitar em Boston para conhecer minha universidade, quando viajou à América do Norte com sua prima Niná Bittencourt. Elas passaram a maior parte do tempo em Nova York, onde eu as encontrava nos fins de semana. Durante os primeiros anos de universidade, eu também fui à Big Apple algumas vezes para me encontrar com meu amigo Neville d'Almeida, que morava lá na época. Neville também é de Belo Horizonte e, em seu retorno ao Brasil, tornou-se famoso principalmente como diretor de cinema, além de ator, escritor e fotógrafo. Contudo, na maior parte do tempo, eu passava os fins de semana na escola, estudando.

 

Cidade de Nova York

 

Enquanto estive na América, eu voltei todos os anos para passar o Natal em minha casa. Em uma dessas viagens, lembro-me de ir a uma festa de Ano Novo no Yacht Club local, situado à beira da Lagoa da Pampulha. Eu estava com duas amigas, Ligia Ximenes e Teresinha Dollabela, e o namorado de Tereza, Humberto Carvalho, que era um jovem advogado. Depois da festa, eles decidiram parar em uma boate chamada Chat Noir para comer alguma coisa, pois todos estávamos com fome.

Eu nunca havia estado lá antes, mas eles serviram um bom picadinho. E quando estávamos prestes a sair, Humberto me perguntou se eu conduziria o carro dele até a Avenida Bias Fortes, pois queria levar para casa o seu amigo, Álvaro Batista de Oliveira, no veículo deste. Álvaro estava na boate desde mais cedo, e bêbado demais para dirigir com segurança. Entendendo que as outras duas garotas não sabiam dirigir, eu concordei. Humberto partiu e eu o segui, mas logo fiquei um pouco para trás. Não me preocupei, pois Tereza conhecia o caminho.

Foi então que notei atrás um carro se aproximando, e muito perto do nosso. E enquanto o observava pelo espelho retrovisor, ele trombou em nós, obviamente de propósito. Nas ruas desertas antes do amanhecer, percebi que não deveria deixar que nos ultrapassasse, pois poderíamos ser obrigadas a parar, e seus ocupantes claramente tinham más intenções. Então, eu virava da direita para a esquerda incessantemente, cada vez que tentavam a ultrapassagem, e, dessa maneira, consegui, enfim, chegar até a casa de Álvaro, onde Humberto nos esperava.

O carro que nos perseguiu estacionou do outro lado da rua. As duas garotas estavam chorando e contaram a Humberto o que havia acontecido, enquanto eu trocava de lugar com Tereza e sentava-me no assento traseiro do carro de Humberto. Humberto nos disse que conhecia um dos garotos do outro carro e foi conversar com eles, e perguntar por que haviam se comportado daquele modo. Depois de pouco tempo, ele voltou e nos disse que os rapazes declararam ter as piores intenções. De repente, eles saíram do carro, se acercaram e atacaram Humberto. E uma briga começou no meio da rua. Felizmente, o amigo do Humberto, Yeyé, ouviu a confusão e saiu à rua para prestar-nos socorro. E assim os atacantes desistiram das agressões e foram embora, mas o pobre Humberto saiu da briga com a mão quebrada.

Quando finalmente consegui chegar em casa, meu pai estava furioso comigo por chegar tão tarde, mas eu disse-lhe para parar de gritar e ouvir sobre o que havia acontecido. Quando ele ouviu a história, ficou ainda mais furioso, mas pelo menos não era comigo. Ele ligou para o advogado, Dr. Lellis Silvino, e foram juntos à casa dos pais de Humberto para conversar com ele e informar à polícia.

Os dois jovens foram presos e se fingiram de inocentes, dizendo que não haviam feito nada de errado, apenas perseguiram o carro dirigido pela filha do Dr. Luciânia. Tornou-se abundantemente claro para mim que eu era considerada um jogo justo e que não merecia respeito. Meu pai me contou isso com tanta tristeza nos olhos que achei melhor nunca mais mencionar o assunto.

Logo voltei para a universidade em Boston, muito feliz por estar longe da minha cidade natal, e todos os procedimentos relativos ao episódio foram cuidados pelos advogados de meu pai e do Humberto. Muitos anos depois, Humberto de Carvalho casou-se com a minha prima Claudia Faria, filha de Aloisio Faria, dono do Banco Real, e de minha prima Clea Dalva.

Alguns anos depois disso, eu ouvi uma história que envolvia o Aloisio Faria e minha prima Clea, embora minha mãe tenha se recusado a confirmar o envolvimento de meu pai no imbróglio. Aparentemente, Aloisio se apaixonou por uma elegante belle de sociedade, e anunciou à esposa que a deixaria. Ele e o irmão eram os donos de um banco poderoso que haviam herdado do seu pai. Clea, que era apaixonada e feliz com seu marido de longa data, ficou arrasada com a declaração do marido. Aparentemente quando meu pai soube o que acontecia com a sua sobrinha querida telefonou-lhe, e segundo alguns relatos, disse para ela para não se preocupar, porque o marido não permaneceria nessa loucura. “Mas o que você quer dizer com isso tio Totoca? Aloisio está muito determinado”, ela choramingou para o seu tio. “Quando eu o avisar”, meu pai disse a ela, “que se ele se divorciar de você, nós ajuntaremos nossas ações do banco e o tomaremos dele, ele mudará de ideia.” O que eu sei é que Aloisio e Clea não se separaram, e alguns anos depois mudaram para São Paulo com suas filhas, onde viveram juntos pelo resto de suas vidas, e o relacionamento entre nossas famílias continuou amistoso como sempre foi.

Foi durante o período em que eu estudava em Boston que a pílula contraceptiva se tornou disponível, ou pelo menos foi quando ouvi falar sobre isso pela primeira vez. Essa descoberta, que deu às mulheres o controle de suas vidas, foi o resultado de uma campanha iniciada por Margaret Higgins Sanger, 1879 - 1966. Ela era uma ativista, escritora e enfermeira americana de controle de natalidade, que usou seus escritos para promover suas ideias. Ela foi processada e perseguida na América, principalmente por opositores ao aborto, e consequentemente fugiu para a Grã-Bretanha. Ela acreditava que, para que as mulheres tivessem uma posição de mais igualdade na sociedade, elas precisavam decidir quando ter os seus filhos.

Em setembro de 1965, mudei do dormitório para um lindo apartamento, também em Bay State Road, que aluguei com minha amiga americana Judy Shaper. Foi uma grande novidade para mim, mas a vida continuou no mesmo ritmo, com aulas e muito trabalho. No final desse semestre, em dezembro, eu finalmente me sentia mais à vontade com minha carga de trabalho.

Quando tento me lembrar de quando eu inicialmente vi o Joseph Eros, recordo-me de duas ocasiões em particular. Na primeira, eu estava de pé no hall principal do Business College, provavelmente entre as aulas, quando notei alguém que o atravessou rapidamente e seguiu em direção aos elevadores. Eu o observei e achei-o tão diferente de todos os demais, e tão obviamente não americano. Lembro-me de perguntar a alguém por perto: “Quem é esse? E eu me pergunto de onde será?” “Ele é da Inglaterra”, me disseram. Em outro dia, enquanto eu caminhava pela Bay State Road, minha atenção foi repentinamente atraída pela alta velocidade de um carro que passava. Olhando na direção do som, notei que era novamente o inglês.

Os meses se passaram e o inverno caiu sobre a terra. Uma tarde, eu estudava na biblioteca com um amigo chamado Panos Geuras. Não me lembro se Panos era um grego americano ou realmente da Grécia. Depois de algum tempo, decidimos ir ao hall do elevador para fumar um cigarro, e lá estava o rapaz inglês encostado numa parede perto do elevador, também fumando. De repente, ele olhou para mim e disse: "De onde você é?"

Eu olhei para ele e respondi: "Eu sou do Brasil e você é inglês, eu sei!"

Ele sorriu com a minha admissão implícita de que eu já o havia notado antes. Essa troca de palavras resultou no olhar irritado de meu amigo grego, que logo sugeriu que voltássemos à biblioteca.

A escuridão do inverno veio cedo. Nós trabalhávamos dia a dia, debruçados sobre nossos livros, numa incessante batalha contra o tempo. A terça-feira, 9 de novembro, prometeu não ser diferente de qualquer outro dia para essa estudante da Universidade de Boston. Às cinco da tarde, novamente me vi na biblioteca da Business College, quando de repente as luzes se apagaram. Todos se entreolharam imaginando o que havia acontecido e fomos olhar pelas janelas para ver se era apenas em nosso prédio. Parecia estar escuro em todos os edifícios ao longo da Commonwealth Avenue, mas era difícil dizer a extensão do problema devido ao brilho de faróis de carros. Depois de esperarem um pouco para ver se a energia seria restaurada, os estudantes decidiram se aventurar na direção de seus escaninhos onde guardávamos os casacos de inverno. Alguns tinham pequenas lanternas à mão e ajudaram aqueles que não as tinham. Saindo na rua iluminada por faróis, só então se podia ver que as luzes das ruas estavam apagadas e o tráfego intenso do cruzamento estava sendo coordenado por estudantes.

O apagão do nordeste americano de 1965 ocorreu devido a um substancial interrupção do fornecimento de energia, causada pela falha do sistema de proteção em uma das linhas de transmissão de uma usina hidrelétrica em Queenstown, Ontário, perto das Cataratas do Niágara. Afetou partes de Ontário, no Canadá, e nos Estados Unidos afetou Connecticut, Massachusetts, New Hampshire, Nova Jersey, Nova York, Rhode Island, Pensilvânia e Vermont. Mais de 30 milhões de pessoas e 207.000 km2 ficaram sem eletricidade por até 13 horas.

Quando eu finalmente decidi descer as escuras escadas do quinto andar, fiquei feliz em encontrar alguém com uma lanterna que me desse ajuda. E após pegar o meu casaco no primeiro andar, chegamos à rua. Os caprichos da juventude não têm limite e, longe de se preocupar, tudo parecia uma grande aventura para nós. Mas devo dizer que o senso natural de ordem e cautela da maioria das pessoas foi muito impressionante, e o intenso tráfego de carros do fim do dia seguia calmamente sob a direção dos estudantes, os quais haviam se aventurado na escuridão para o papel de guardas de trânsito temporários.

Virei à esquerda e segui pela Commonwealth Avenue até o final dos prédios da Universidade, virei à esquerda outra vez e depois à direita na Bay Stay Road, passando pelo meu antigo dormitório, The Towers, logo depois o International Student Center. Ali atravessei a rua e entrei no prédio no qual eu dividia um apartamento do segundo andar com minha amiga Judy.

            Não havia uma luz visível em nenhum dos edifícios ao longo do caminho, mas ao mesmo tempo havia uma sensação de calma e ordem que não deixou de me impressionar. E, às escuras, sentindo o caminho da entrada do meu prédio, subi cuidadosamente as escadas, e finalmente cheguei ao apartamento. Fiquei feliz ao ver que a Judy já estava lá e escutava o noticiário num rádio transistorizado. Só então que percebemos que algo realmente dramático acontecia. E, para a nossa surpresa, foi anunciado que haveria em breve um pronunciamento do próprio Presidente.

Logo ouvimos Lyndon Johnson pedir às pessoas nas áreas afetadas que mantivéssemos a calma e evitássemos sair, para não exacerbar o caos geral. Ele disse que o corte de energia foi o resultado de uma falha ainda não identificada no sistema de fornecimento, e ninguém ainda sabia quando a energia seria restaurada. Ele também nos informou que todo o pessoal militar, polícia, bombeiros e funcionários de hospital estavam a postos para ajudar em emergências, como pessoas presas em elevadores, assim como nas emergências de tráfego. As notícias também nos informaram que os hospitais estavam operando com geradores próprios e que não havia necessidade de alarme.

Com isso, muitos estudantes decidiram que era tudo muito divertido e, como ninguém podia estudar no escuro, pelo menos podíamos nos divertir ao som da música no rádio. E como tínhamos uma lareira no nosso apartamento, decidimos assar marshmallows e salsichas no fogo. Logo chegou também o meu amigo grego Panos, que me trouxe um grande arranjo de flores que ele havia obtido em um restaurante onde estava quando começara o apagão.

No dia seguinte, a vida voltou ao normal com as aulas e horas intermináveis ​​de estudo. Mas no princípio de dezembro, pela primeira vez, eu na verdade estava me sentindo tão calma e pronta para enfrentar os exames, que numa tarde de domingo fui com meu amigo John Dewey, também conhecido como Jeep, dar uma volta de carro à beira-mar para assistir o maravilhoso espetáculo da neve caindo em cascata sobre as ondas que batiam numa encosta. Estacionando o carro nessa pequena baía, ladeada à direita por uma casa velha em um penhasco, contemplamos por um tempo a beleza da paisagem branca. Lembro-me do Jeep ​​com muito carinho, pois ele estava apaixonado por mim, apesar de não ser retribuído. Seguimos caminhos separados, mas eu o vi novamente muitos meses depois, quando fiquei impressionada com a tristeza que vi em seus olhos quando ele olhou para mim.

Em meados de dezembro de 1965, na noite de sexta-feira, após o término dos exames, e pouco antes do recesso de Natal, fui a uma festa com um amigo francês, onde encontrei o inglês novamente. Esta foi a nossa primeira oportunidade de conversar brevemente, perguntar o nome um do outro e trocar números de telefone. E como viajaria no dia seguinte para passar o Natal com meus pais no Brasil, combinamos de nos encontrar novamente quando voltasse.

A família de Joseph Alexander Martinez Dallarosa era britânica, de ascendência italiana, e morava perto de Winchester, no Reino Unido. Provavelmente, como resultado de sua origem estrangeira, Jo era, em muitos aspectos, mais inglês do que os ingleses. Pelo menos foi assim que ele se aparentou para mim. Tendo nascido em Roma, para onde seu pai foi enviado durante a guerra e aí conheceu a sua esposa, Jo foi levado para a Inglaterra quando ainda bebê, onde vivia a família de seu pai. E como era habitual na Inglaterra, ele foi enviado para um colégio interno chamado Downside, aos nove anos de idade.

Este era um importante internato católico, na época somente para meninos, e um dos colégios mais antigos e distintos da Inglaterra. Downside Abbey está localizado em Stratton-on-the-Fosse, em Somerset. Foi fundado por monges do mosteiro de St Gregory, na Flandres, que se estabeleceram em Somerset em 1814. Durante o século 19, o Downside permaneceu uma pequena escola monástica, mas o século 20 trouxe expansão do número de prédios da escola – teve, em certa época, 600 meninos de uma só vez.

Depois que Jo terminou seus estudos em Downside, ele fez uma grande turnê europeia. Ele havia aprendido italiano com seus pais e francês na escola, então foi para a Alemanha para aprender alemão. Em Colônia e Munique, o jovem, rico e bonito Joseph Eros aprendeu alemão e conheceu Ulla Larson, uma bonita sueca, mais de dez anos mais velha que ele. Ulla tinha um passado exótico. Muito jovem foi expulsa da casa de seus pais por se engravidar, e conseguiu emprego em um circo, cuidando dos elefantes. Como resultado, foi apelidada de Jumbo.

Quando Jo voltou para a casa de seus pais, ele levou Ulla consigo. E seu pai, assim que possível, mandou-o para a universidade nos Estados Unidos, pois estava cansado de suas aventuras pela Europa. E também, especialmente por seus frequentes acidentes de carro, devido ao gosto pela alta velocidade. Ele me contou que o Jo teve treze pequenos acidentes de carro em um período de um ano. Quanto a Ulla, ela foi morar em Londres, onde se tornou grande amiga da irmã de Jo, Luciana.

Na universidade americana, Joseph Dallarosa se destacava dos americanos de todas as formas possíveis. Ele também desafiou muitas regras da universidade, pois não tinha a menor intenção de se adaptar aos costumes e normas locais. Em seu segundo ano na Business School, ele deu uma festa com alguns amigos americanos, também estudantes de BU. As autoridades universitárias, pois havia uma polícia universitária, descobriram então que bebidas alcoólicas haviam sido servidas na festa. E todos foram convocados a comparecer perante o conselho disciplinar universitário para dar explicações de suas ações, uma vez que a compra de álcool era proibida a menores de 21 no Estado de Massachusetts.

Mais tarde, Jo me contou que chegou ao tribunal universitário com atitude desafiadora pois detestava a América, a universidade e os americanos. Então, quando questionado se ele tinha o hábito de beber cerveja, a transgressão habitual de jovens estudantes americanos, ele declarou que não bebia cerveja porque preferia o uísque ou o vinho. E quando questionado sobre onde obtinha bebidas alcoólicas, ele informou que seu pai as trazia para ele toda vez que o visitava. O resultado desse tribunal foi que seus amigos americanos foram expulsos da universidade, mas eles concluíram que Jo simplesmente agira de acordo com seus hábitos culturais.

Joseph também se vestia de modo muito diferente, em seu habitual estilo inglês de paletó e gravata, que eu achava tão elegante e muito mais ao meu gosto do que o estilo informal americano. Possuía cabelos e olhos escuros e traços marcantes, era muito seguro de si e sofisticado.  Ele comprara um Mustang preto e o dirigia com música estridente, que nunca deixava de chamar a atenção das garotas. Mas a qualidade que eu mais admirava nele era a bondade.

Começamos a namorar em janeiro de 1966, depois das minhas férias de Natal no Brasil, e Jo logo se inteirou de que eu ainda era virgem. Eu nunca havia sentido a menor vontade de ter um relacionamento sexual com alguém, mas, para mim, Jo era diferente. Eu sempre odiava a atitude dos homens, para os quais tudo era permitido, ao passo que as mesmas liberdades, para não dizer licenciosidade, eram condenadas nas mulheres. Percebi que Jo não era adepto a esse chauvinismo habitual, especialmente por causa de sua atitude em relação às experiências sexuais de suas duas irmãs.

Mas antes de nos aventurarmos em um relacionamento íntimo, discutimos isso, embora eu achasse o assunto extremamente embaraçoso, e Jo me disse que eu tinha que usar contraceptivos. Isso significava ir a um médico e pedir uma receita para a pílula. Como eu era tímida, decidimos que Jo iria comigo para me dar confiança, posando como meu noivo. Fiquei grata por seu cuidado e consideração, mas eu também nunca fui o tipo de pessoa que me arriscava. Estivemos apaixonados por muitos anos e sempre tratamos um ao outro com muito carinho e ternura.

Enquanto eu ainda morava com a minha amiga Judy, Jo nos levava ao supermercado em seu carro e me encontrava na universidade sempre que tínhamos tempo livre. Nos fins de semana, Judy costumava ir a Nova York para ver seu namorado, Richard Levine, com quem mais tarde se casou, e Jo passava os fins de semana comigo. Essa foi a primeira época desde que iniciei a universidade, que realmente desfrutei de uma vida social. Armei-me com roupas bonitas compradas na Bonwit Tellers - uma loja de roupas de luxo situada em um grande prédio de tijolos vermelhos no centro de Boston e, assim, vestida adequadamente, passeávamos pela cidade em grande estilo no elegante carro preto Mustang do Jo.

Ainda me lembro do meu restaurante favorito, o Anthony's Pier 4, localizado ao litoral sul de Boston, que funcionava em uma grande balsa fluvial, a Peter Stuyvesant, construída em 1927, e que originalmente funcionou ao longo da cidade de Nova York. Em 1963, essa balsa foi comprada e restaurada por Anthony Athanas, que a lançou como restaurante. Numa ocasião Jo organizou uma festa surpresa no meu aniversário, a única que eu já tive na vida, mas eu realmente não gosto de surpresas.

No semestre seguinte, morei principalmente com Jo, embora ainda mantivesse meu apartamento com Judy. Ele morava em um apartamento de dois quartos e alugava o quarto extra para um canadense chamado James, que trabalhava na cidade. No princípio, eu fiquei desconcertada com a ideia de James morar lá, mas Jo me disse que tinha pena dele, pois estava sempre com muito pouco dinheiro, trabalhava o tempo todo e, portanto, não o veríamos com frequência. Assim, eu aceitei a presença ocasional de James, por ficar comovida pela bondade de Jo.

Lembro-me particularmente de uma manhã de sábado ouvir o James sair do apartamento cedo para ir trabalhar, quando ainda estávamos no nosso quarto conversando. Naquela tarde, quando estávamos conversando e rindo na banheira, o James voltou do trabalho. E quando saía novamente para o resto do fim de semana, ele bateu suavemente na porta do banheiro e disse. "Olá, crianças, se vocês conseguem brincar o dia inteiro, devem se casar!"

Pouco tempo depois, no mesmo ano, o pai do Joseph foi a Boston para uma visita de fim de semana. Ele ficaria hospedado com seu filho, pois o James nunca estava nos fins de semana. E eu iria para meu apartamento antes que o pai chegasse, pois pretendia encontrá-lo formalmente. O Sr. Martinez Dallarosa, porém, adiantou a viagem e chegou de forma inesperada no início do sábado, quando eu ainda dormia tranquilamente. Fiquei tão envergonhada que não sabia o que fazer, mas numa hora tive de sair do quarto para conhecê-lo. Ele levara para mim um grande urso de pelúcia, que a mãe de Jo havia enviado. Eu chamei meu urso de Jojo, o apelido de infância de Jo. E ainda o tenho.

 

  

Esquerda: Jo tirando uma foto de Anastásia no espelho. Boston 1966.

Centro: Mario Martinez, pai de Jo e Anastásia em Boston em 1966.

À direita: Jo – Joseph Alexander Martinez Dallarosa.

Todas as três são parte da coleção de fotos de A.L.P. Gouthier.

 

Tenho muitas boas lembranças de nossa vida em Boston e de nossa primeira casa juntos. Mas uma das minhas melhores recordações era voltar das aulas noturnas e subir as escadas correndo para cair em seus braços.

No ano seguinte, nós nos mudamos para outro apartamento. E continuamos a viver felizes e apenas um para o outro. Aqueles dois anos em Boston com Jo foram os mais felizes da minha vida. Nossa vida era perfeita, sem nenhuma preocupação com o futuro. Tudo o que tínhamos que fazer era estudar muito para passar nos exames e sermos felizes. Jo não era um aluno tão dedicado quanto eu, mas eu insisti que ele também trabalhasse duro para que pudéssemos viver no mesmo ritmo. E quaisquer outras diferenças que possuíamos ainda não importaram.

Latest comments

24.01 | 15:39

Ganhei o livro de minha amiga M. Renault e li con sofreguidão o que se passa no início da década de 60, o Minas, os amigos de M.Renault na época, saudades...

04.11 | 12:35

Onde comprar? Pela internet não achei.

25.08 | 16:07

Está perfeito.Parabéns.Adorei

26.03 | 16:05

Acho que o sofrimento e as perseguições o mudaram, mas ele nunca perdeu seu lado humano.
Fiz o melhor que estava em meu alcance por ele.
Sinto muito sua falta!