IN DEFENS - NEMO ME IMPUNE LACESSIT

A Segunda Frente

Capitulo 21 - A Segunda Frente

Tempo Coberto: 1991 - 1999

Locais: Londres e Belo Horizonte


            Pensando no passado, agora acho que a razão da presença insistente de Hades ao meu lado nos primeiros oito anos antes do nascimento de nossos filhos foi porque ele não suportava ficar sozinho. Ah, ele me apreciava e eu me encaixava perfeitamente. Uma mulher independente, capaz e segura de si, que era bem vestida, refinada, educada, abastada e que se movia nos mesmos círculos sociais que ele. Mas amor? Isso foi sempre um pouco difícil para Hades. Não tenho certeza se ele conseguiria amar uma mulher. Ele as via como úteis, e mesmo como um apêndice necessário na vida. Isso é tudo.

‘O poderoso Hades realmente tinha um temor secreto! Perséphone observara isso há muito tempo, embora ele tentasse esconder sua fraqueza por trás de uma máscara fixa de autoconfiança. Perséphone, no entanto, também permaneceu com ele por razões menos nobres do que o amor. A princípio, foi por falta de uma opção melhor, embora ela admitisse que a vida ao lado dele tinha suas fascinações. Portanto, todas as suas tentativas de fugir dele, ao longo dos anos, foram infelizmente muito anêmicas para ter sucesso.'

Mas o mais impressionante de tudo era que Hades não conversava! A vida com ele, fora de horas de trabalho, era apenas uma sequência de entretenimento, sempre frequentando os melhores lugares e se misturando com as melhores pessoas. E enquanto estávamos juntos, quando relaxava, ele geralmente se escondia

atrás de sua máscara de silêncio, até o dia em que eu não senti mais necessidade de conversar com ele.

No entanto, eu costumava relembrar e pensar como eu sentia falta do relacionamento mais pessoal que tive com Joseph Eros. Fazia tanto tempo que alguém havia entrado em minha vida, alguém que poderia, ou estaria disposto a ficar ao meu lado durante o tumulto que, sem dúvida, surgiria quando meu pai falecesse. Eu sabia ser inevitável voltar ao Brasil um dia, quando meu pai morresse, e que, tanto quanto possível, seria melhor viver livre de emoção quando isto ocorresse. Mas eu sentia falta do amor.

Quando eu terminei meu casamento com Hades, a minha sogra me disse que uma mulher não deixa o marido! Mas ela não entendia como as mulheres brasileiras são diferentes das gregas. No passado muito distante, algumas de nossas ancestrais que viviam na Pindorama, quando descontentes com seus maridos, lhes acertavam a cabeça com um tacape. Hoje em dia somos mais civilizadas, mas ainda totalmente diferentes das fêmeas helênicas que inclinam a cabeça em submissão quando atormentadas por maus maridos.

Meus outros antepassados, os ibéricos, assimilaram muitos costumes dos mouros que invadiram suas terras, como o amor por comida picante, como alho frito, enquanto os gregos desenvolveram uma aversão exagerada pelos costumes do povo da Ásia Menor, que eles haviam invadido, e odiavam a culinária aromática. Eu tive que aprender enquanto estava casada com Hades que comida não deve cheirar. Ele se tornava histérico ao menor odor que emanava da cozinha. Até o aroma suave de um bolo era ofensivo para ele. Qu'ils sont fous, les Grecs! Foi quando percebi que meu pai estava certo quando dizia: “Case sua filha com o filho do seu vizinho”.

A mãe de Hades, a Yaya das crianças, que era uma pessoa muito agradável apesar de ter vivido sob as regras gregas da subjugação feminina, me disse que eu deveria ir embora e deixar meus filhos sob seus cuidados, assegurando-me que eu teria permissão para vê-los. Mas eu venho de uma escola diferente de pensamento em relação aos direitos das mulheres, por isso recusei educadamente.

Quando a necessidade de voltar à pátria amada aconteceu mais cedo do que eu esperava, a princípio pensei que, em um período de três anos, eu seria capaz de resolver todos os meus problemas brasileiros e retornar à minha Ilha da Paz no Atlântico Norte. E antes de as crianças irem comigo para o Brasil, Hades e eu assinamos um acordo pelo qual elas deveriam ser levadas ao Reino Unido duas vezes por ano, durante as férias, com despesas custeadas por mim, embora eu também tivesse o direito de passar uma pequena parte de suas férias com eles.

Mas as minhas expectativas foram logo demolidas pela guerra perniciosa de herança que explodiu em chamas ao meu redor, e eu percebi que não tinha ideia de quando seria capaz de fugir novamente. Então, dois anos após nossa chegada no Brasil, eu tive que enfrentar Hades com o fato de que não voltaria à Inglaterra com as crianças, como havia sido combinado. Isso significou que a partir de então eu teria que guerrear também em uma segunda frente de batalha nos tribunais ingleses, onde eu era vista como apenas mais uma estrangeira tentando privar meus filhos britânicos de uma educação inglesa, contra a vontade de um cidadão britânico rico.

Consequentemente, enquanto no hemisfério sul proliferavam as acusações e os processos judiciais ameaçando as minhas posses, no hemisfério norte algo ainda mais precioso para mim estava em risco – a presença de meus filhos ao meu lado, em um período em que eram jovens demais para viver sem sua mãe. Assim, durante muitos anos seguintes, tive que assumir a persona de uma Hydra.

Estratégia, Guerra e Sobrevivência

Perséphone torna-se Hydra.

Demônios em volta estão

Na mente e coração.

O veneno leve flutua,

Em fracos e fortes atua.

É arma de batalha,

Como orgulho que amarga,

E demônio alimenta.

© A.L.P. Gouthier, 2017

            As Hidras eram monstros serpentinos aquáticos na mitologia grega e romana cujo covil era o lago de Lerna, também o local do mito das Danaïdes. Nesta história, cinquenta mulheres, guiadas pelo pai, mataram os maridos e, como punição, sofreram o tormento de viver em eterna batalha. Qualquer um que tentasse decapitar uma Hydra logo descobria que, quando uma cabeça era cortada, mais duas cabeças surgiam.

Após 1991, o relacionamento de longa distância com Hades tornou-se tão tóxico que nenhuma palavra entre nós era imune a interpretações distorcidas, e logo só podíamos nos comunicar por meio de um advogado. Por muitos anos, ele tentou tirar de mim a guarda de nossos filhos para levá-los de volta ao Reino Unido e, para esse fim, tentou todo o possível, desde me difamar até se casar outra vez para que pudesse se apresentar como um homem de família. E a esposa que ele conseguiu era uma socialite internacional que, pelo menos, se mostrou útil para o aprimoramento de sua vida social.

Em breve, ele começaria a fazer tudo o que podia para tirar de mim os poucos dias anuais junto com as crianças, a ponto de constantemente ameaçar invadir as nossas férias, onde que estivéssemos. Por essa razão, eu sempre tentava passar os nossos breves lazeres o mais longe possível da Inglaterra, ou em um lugar que eu sabia que ele detestaria, como a Disney, na Flórida, ou em Los Angeles.

Em certo ano, eu anunciei antes das férias, como era obrigada a fazer, que viajaríamos do Brasil, em rota sobre o Polo Sul, direto para a Nova Zelândia, por uma semana, e dali viajaríamos para Nova Délhi no trajeto de volta ao Reino Unido. Como as crianças estavam empolgadas com a aventura que se aproximava, elas discutiram isso com o seu pai ao telefone. Resultado: ele lhes disse que voaria para Délhi para tirá-las de mim antes do fim de nossas férias.

Ao ouvir isso, eu entrei em contato com meu advogado em Londres e o instruí a aconselhar o advogado de Hades que, se ele fosse em frente com seus planos, eu o mandaria prender assim que chegasse de volta ao aeroporto de Londres, sob a acusação de sequestro. E só para ter certeza de que não teria surpresas desagradáveis, preparei às pressas um novo itinerário para Singapura, em vez de Délhi, e um dia antes de deixar a Nova Zelândia anunciei mais uma mudança de planos, desta vez decidindo viajar para Bangkok.

Essas viagens muito longas deviam ser cuidadosamente planejadas, principalmente para não cansar as crianças e diverti-las. Então, do Rio, fomos primeiro a Buenos Aires, e ali relaxamos e dormimos por uma noite no mesmo hotel, o Alvear Palace, onde quando criança fiquei com minha mãe. No dia seguinte, embarcamos em um voo para Auckland, local em que, já a partir da primeira noite, nosso problema foi o jetlag.

Ficávamos pesados ​​de sono no fim da tarde, e acordados no meio da noite, instantes em que eu precisava de ideias e criatividade para mantê-los entretidos. Eu apenas ria do problema quando acordávamos na calada da noite, e pedia suas iguarias favoritas ao serviço de quarto. Em seguida, assistíamos a seus filmes favoritos na televisão. Uma excursão de muito sucesso durante o dia foi uma visita a uma fazenda de ovelhas, onde Perseus se cansou de correr atrás dos cordeirinhos, enquanto Xena fazia uma delicada corrente de margaridas.

De Auckland, voamos para Bangkok, onde ficamos no mais maravilhoso e famoso Hotel Oriental. Perseus se divertiu muito na piscina, principalmente depois de fazer um amigo que lá estava com seus pais. E Xena gostou muito de um passeio de barco pelo rio a caminho de um palácio local, bem como nosso retorno por tuck-tuck. Esses são veículos triciclos com motores e chassis de motocicleta, e provavelmente construídos em oficina. Possuem um assento na frente para o motorista e um amplo assento na parte de trás para os passageiros. E são muito úteis e comuns em alguns países do terceiro mundo como meio de transporte alternativo.

            No final de nossa estadia, quando já deixávamos o hotel rumo ao aeroporto, Perseus decidiu reclamar do fato de eu já ter enorme quantidade de bagagem, e porque estávamos alguns minutos atrasados. E então, inesperadamente, um dos carregadores lhe deu um cartão. Ele ficou surpreso e o passou para mim. Enquanto nos afastávamos de carro, eu o li para ele. Era uma passagem de Tolstói:

“A coisa mais difícil, mas essencial, é amar a Vida,

amá-la até quando se sofre, porque a Vida é tudo, a Vida é Deus,

e amar a Vida significa amar a Deus.”

 León Tolstói, 1855

 

‘Portanto, por oito longos anos, Perséphone encarnou uma Hidra, que com suas múltiplas cabeças travou suas batalhas multifacetadas, das quais não havia paz.’  

Durante os anos em que batalhava para frustrar as tentativas de Hades de tirar de mim as crianças, eu não corria o risco de me comunicar diretamente com ele, contudo, ele não sentiu tais escrúpulos, e enviava a mim e ao meu advogado mensagens venenosas incessantes. E enquanto isso, ao mesmo tempo, mas vindo de direção oposta, em Belo Horizonte vários tipos mentiras malévolas e deletérias eram lançadas contra nós, numa tentativa contínua de nos denegrir.

O veneno pode ser definido como uma substância capaz de causar doença ou morte a um organismo vivo. Deriva do inglês médio puisun, do século 12, que veio ao francês antigo e ao latim como poção. Mas veneno também pode significar algo abstrato, que é prejudicial ou pernicioso à felicidade ou ao bem-estar, como na frase: o veneno da calúnia. Além disso, um veneno intangível pode se espalhar para arruinar, desmoralizar e difamar. Mas ainda também pode atacar a mente do envenenador, corrompendo-o e deformando-o como na frase: o ódio envenenou sua mente. Portanto, fabricar veneno ou abrigar ódio são altamente autodestrutivos.

Veneno e Antídoto

Nem todo veneno do mundo

Alterará a realidade

No meu lar felicidade.

Nada assim distorcerá,

Ou lembranças mudará,

De carinho e acalento,

De pais sempre atentos.

Alguns tentaram então criar

Versão falsa de meu lar,

Mas eu não descansarei,

Mentiras contestarei,

Escrevendo outra versão,

Estórias que não deixarão

A calúnia descansar.

Eu lutei tantas batalhas,

Contra almas diferentes

E também diversas frentes.

De guerras eu sobrevivi,

Com antídotos fruí.

O passado está morto,

A verdade é um fato.

© A.L.P. Gouthier, 2014

Aqui levo na minha mente o maior mistério da minha vida, um com o qual estou condenada a viver pelo resto dos meus dias. Por que meu pai me olhou com tanta raiva nos últimos anos de sua vida? Não poderia ter sido apenas pelo fato de eu ter me mudado para o Reino Unido, porque ele até me ajudou durante esse tempo. Algo mais deve ter acontecido, e finalmente comecei a pensar que alguém pode ter seriamente espalhado veneno sobre mim.

Do meu ponto de vista, o fato é que, enquanto estudava nos Estados Unidos, pelos primeiros quatro anos, aprendi como era viver no anonimato. E cada vez que voltei para casa, cada vez mais me ressentia da velha autoconsciência que experimentava em público. Isso continuou até que eu tive a coragem de dizer a meu pai, para seu desgosto, que eu não aguentava mais morar lá.

Contudo, antes de minha experiencia na universidade, nós vivíamos felizes dentro de nosso enclave encantado, envolto na ideia de segurança de meu pai que nunca incluía guardas, os quais ele considerava mais perigosos que bandidos. Em vez disso, ele preferia confiar a segurança de nossa casa a pessoas que ele conhecia há algum tempo, e que acreditava serem de bom caráter. Entre eles, estava Margarido, que por muitos anos trabalhou como jardineiro e, eventualmente, progrediu para o posto de vigia noturno, em torno de nossa Chácara. Ele era um homem de grande estatura, o que, provavelmente, assustaria estranhos, mas que era tão gentil quanto um cordeiro.

Havia pessoas que trabalharam para nós a vida toda, como a Ercília, que morava em nosso apartamento no Rio de Janeiro e adorava ouvir pelo rádio os horrores absolutos transmitidos no noticiário policial, isto enquanto cozinhava comida deliciosa para nós. Eu costumava dizer para ela: “Ercília, essa rádio é aterrorizante! Como você pode ouvir tais coisas?” E ela respondia: "Temos que saber o que está acontecendo para nos proteger!"

Eu achava o linguajar usado nessa estação de rádio bastante estranho, pois substituíam várias palavras pelos eufemismos preferidos. Por exemplo, carros, caminhões ou jipes se tornaram viaturas; um roubo ou assalto era um sinistro; suspeitos e criminosos se tornaram elementos. No entanto, as vítimas permaneciam como vítimas.

Depois que Ercília se aposentou e vendemos o apartamento da família no Posto 6, na Avenida Atlântica, em Copacabana, meu irmão providenciou para que ela morasse em Belo Horizonte numa casinha atrás da residência de uma família que ele conhecia – que poderia ficar de olho nela durante a velhice. Eu a vi durante esse tempo e ela estava bem, exceto reclamar de não ter gostado de se mudar do Rio. Pobre Ercília, ela estava sempre ranzinza com alguma coisa, mas era tão gentil e atenciosa com meus filhos quando pequenos, tanto que até hoje eles se lembram dela com carinho.

Lembro-me de como ela se orgulhava de suas economias no banco e de algumas joias bonitas que ela possuía, recebidas de vários empregadores que nos antecederam. Talvez ela tenha falado muito livremente sobre isso na frente de pessoas desonestas, porque, numa véspera de Natal, quando pela primeira vez a família que cuidava dela estava ausente, Ercília foi assaltada e assassinada.

Voltando ao assunto das palavras intrigantes, lembro-me de quando fui apresentada a um computador. Eu estava no Brasil e meu professor disse: “Isso será simples para você, porque é tudo em inglês e você fala inglês”. Dei uma olhada em um programa do Windows e disse: "Isso não é inglês, porque não é isso que chamo de janela!" O inglês se tornou o idioma da tecnologia, porque é o idioma moderno para o comércio. Em tempos anteriores, o francês foi a língua comercial, e existiram outras antes, pois uma língua é uma ferramenta viva que evolui constantemente.

Existem também diferentes maneiras de falar um idioma específico, além de variações de sotaque. E um idioma também é um pouco diferente quando falado por pessoas de diferentes origens, porque elas tendem a escolher palavras semelhantes às de sua língua materna, criando assim versões idiomáticas diferentes. Do mesmo modo como sabemos que as pessoas da Índia falam Inglish, pode-se dizer que os brasileiros falam o idioma Bratish, o qual é facilmente percebido por outras pessoas que falam português do Brasil. Mas enquanto alguns de nós nos interessamos por diversidade, isso também pode ser um objeto de ódio e ressentimento para os outros.

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