Tempo Coberto: 2003 a 2015
Local: Rio de Janeiro.
Esta é a história de um belo refúgio que criei para mim, e que tem vista para o Atlântico Sul. Um santuário que me proporcionou meu próprio tipo de esplendor, independentemente de qualquer tendência atual da moda, ou regras que eu não prestei atenção. Esse não era um lugar para ser visto, mas um local para eu descansar e planejar minha vida futura em segurança, num momento em que muito precisava recuperar as minhas forças. Ele refletia a beleza que eu achei tão encantadora nas terras longínquas do sudeste da Ásia, que eram também tão agradavelmente distantes do mundo que eu queria esquecer.
Esse foi o meu trampolim final, que me ajudou a fugir de um país onde eu vivia havia mais de dez anos em meio a um tormento destruidor de almas quase contínuo. E nenhuma palavra pode descrever o efeito que isso teve sobre nós. Segundo o meu sobrinho, o meu irmão Antenor mudou completamente durante esse período, embora eu não tivesse certeza se entendi o que ele quis dizer. Sempre achei meu irmão muito difícil de ler, pois ele nunca realmente foi do tipo verbalmente expressivo. E minha irmã Clarissa esteve muito doente e foi hospitalizada com múltiplas infecções. Seus médicos aconselharam que ela não deveria mais ser informada sobre os detalhes da discórdia que nos arrodeava.
Apesar de estar inicialmente empolgada em administrar meu próprio negócio, com o passar do tempo me afastei cada vez mais do mundo, preferindo trabalhar de casa, e também me dediquei na criação de lugares bonitos e privados onde morar. Para mim, a beleza inspira tranquilidade. Quando cercada de beleza, a minha mente alcança um estado de repouso regenerativo. E este é o bálsamo que usei para curar minhas feridas.
Mesmo assim, isso não foi suficiente. Dentro de meus santuários, quando não estava trabalhando, eu mantinha a minha mente ocupada, mergulhando-me em livros. Um dos que li foi Viagens com minha tia, de Graham Greene, no qual a velha tia conta a seu sobrinho a história de seu amigo, o tio Joe, que morava em Milão:
“O tio Joe estava muito triste devido à sua condição cardíaca, o seu médico seriamente recomendara que ele tivesse um estilo de vida menos aventureiro. E assim, incapaz de se deliciar por seu grande prazer de viajar, ele comprou uma casa muito grande no interior da Itália, desvalorizada por sua proximidade com uma autoestrada, e passou a decorar cada parte dela no estilo de cada um de seus países favoritos”.
A tia relatou ao seu sobrinho os eventos de um fim de semana em que foi visitar o tio Joe em sua casa de campo:
“Eu estava lá embaixo conversando com a enfermeira do Joe, quando ouvimos um estrondo alto no andar de cima. Assustadas, nós duas subimos correndo as escadas e encontramos Joe esparramado no chão do corredor, morto. Ele usava casaco e chapéu e carregava um guarda-chuva e uma mala, que caíram ao lado dele”.
Então, tio Joe morreu do jeito que ele queria viver, viajando! Ele estava no momento de sua morte, indo de um apartamento decorado em estilo francês para outro adornado provavelmente na moda holandesa.
‘Assim, Anastásia esperou até ter um lugar grande o suficiente para decorar suas várias partes nos diferentes estilos de seus países favoritos. E, no Refúgio, ela finalmente se entregou às suas fantasias, deu vida a seus sonhos e encontrou um lugar para colocar a sua grande coleção de artefatos trazidos de suas partes favoritas do mundo.’
O Refúgio é um triplex. Quando entramos no primeiro andar encontramos o salão batizado de Minas Chinatown, que de um lado mostra o oceano e do outro apresenta uma esplêndida Chica da Silva em seu mundo do século 18. Chica é retratada em um grande quadro tríptico que cobre a maior parte de uma parede e, como a sua história conta que, em vida, ela sonhara ver o oceano, eu aí a levei, embora três séculos mais tarde, para realizar o seu sonho. Esta é a minha homenagem à escrava que se tornou rainha, e que também é um antepassado distante na linhagem de minha mãe.
Em outra parede, dois participantes de uma Festa do Divino posam orgulhosamente em suas roupas de rei e rainha do dia – um colorido festival das antigas Minas Gerais, durante o qual dois escravos se vestiam de rei e rainha e governavam o dia no centro das celebrações. E ao lado há também uma representação pictórica de uma Festa Junina, ocorrendo em uma praça central de uma das cidades históricas, quando grandes fogueiras eram acesas para aquecer as noites gélidas de inverno, enquanto a cidade era festivamente decorada com bandeirinhas coloridas, e as pessoas se vestiam com trajes rurais tradicionais e dançavam as velhas quadrilhas ao som de concertinas.
Ambas as celebrações tiveram origem nas montanhas frias de Minas, onde foram extraídos ouro e diamantes a partir do século 17. E foi onde, no princípio do século 18, que Chica e seu amado João Fernandes de Oliveira, o contratante de diamantes do rei de Portugal, viveram no extremo luxo e esplendor proporcionado por sua posição elevada.
E para fazer a minha atual Chica se sentir em casa, em sua extravagância habitual, decorei seu salão com uma coleção de vasos chineses de várias formas e cores trazidos da China por nossos antepassados portugueses, que foram alguns dos primeiros visitantes do Extremo Leste. E enquanto isso um dragão chinês dourado dançava na parede.
Bordado de dragão da Birmânia. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier
Perto dali uma porta discretamente posicionada à direita nos leva por uma longa passagem até às câmaras privadas secretas. Primeiramente vemos um conjunto de quartos decorados em estilo barroco-mineiro, complementados em mármore azul e preto. Em seguida, vem um escritório com painéis de madeira escura e exibindo uma rara coleção de artefatos da remota ilha de Papua-Nova Guiné. Finalmente, no final do longo corredor, entramos em espaçosas áreas exibindo por todos os lados várias peças requintadas do sudeste da Ásia, bem como quadros de países que fazem fronteira com a região do Himalaia. Os tantras nepaleses pintados com detalhes dourados, assim como os bordados almofadados da Birmânia, culminam em uma ampla sala de banho cercada por espelhos e mármore rosa.
Mas, voltando ao hall, agora damos as costas ao oceano, viramos à esquerda e entramos em uma sala adjacente que exibe três embarcações em mares pitorescos – uma embarcação chinesa, uma caravela portuguesa e uma embarcação de vela triangular. Agora devemos escolher uma das embarcações para a viajam ao leste. Uma vez a bordo, nossa embarcação nos eleva suavemente por cima de degraus de mármore rosa até as colinas do norte indiano de uma antiga Índia, onde pesadas colunas de pedra emolduram a visão externa de fartas águas azuis. E aí estamos cercados por pavilhões coloridos onde tocam grupos de músicos, e dançarinos locais giram ao som de música silenciosa. Treliças de madeira delicadamente esculpidas nos protegem de um sol feroz, e enquanto o próprio tempo descansa, nós contemplamos a beleza que nos cerca decorada por brilhantes Zardozzis – bordados da época dos Mongóis – que brilham e brilham na luz do amanhecer ao anoitecer.
Esquerda: pinturas sobre seda da Índia. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Direita: telas de madeira de Rajasthan. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Peça de pedra incrustada da região do Taj Mahal.
Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Nesse andar, várias suítes estão prontas para os nossos hóspedes, cada uma delas inspirada em uma área específica do Globo.
Assim, os aposentos árabes são decorados com quadros de seda bordada com fios de prata, enquanto a câmara de Bornéu apresenta várias máscaras pintadas, oriundas do interior daquela ilha selvagem. Os quartos indianos
são cobertos com delicadas pinturas em seda, características do subcontinente, e as paredes do aposento Balinês oferecem uma coleção de pinturas a óleo trazidos daquela ilha paradisíaca, nos anos logo após
a sua abertura para visitantes.
Uma vez completamente descansados e revigorados em uma das câmaras da ala oriental, continuamos nossa peregrinação ao longo do corredor, com as duas paredes adornadas com pinturas indonésias, representando grupos de pessoas envolvidas em suas tarefas diárias, sem perceberem a nossa passagem. No final desse trajeto, saímos ao ar livre e vemos uma encantadora e isolada fonte, cercada por hortênsias azuis que se inclinam para a água beijar.
Devemos parar aqui para apreciar o silêncio e o ar fresco perfumado pelas flores brancas e roxas de manacás, enquanto as orquídeas pendem de seus ninhos e pequenas bromélias disparam em direção ao céu. Mas assim que observamos o nosso entorno, percebemos que estamos arrodeados por entalhos dourados em madeira, também representando a vida cotidiana de Bali. A beleza é surpreendente. Este é um pequeno pedaço do céu?
Esquerda: Buda indiano, sentado
na posição ocidental. Direita: fonte balinesa.
Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Movidos pela curiosidade, finalmente partimos outra vez, subindo degraus que nos levam aos míticos Jardins Suspensos da Babilônia, cobertos por um teto de céu azul. E aqui brotam arbustos exuberantes, felizes em seu ambiente, enquanto as buganvílias acrescentam uma profusão de cores, e alguns arbustos com pesadas frutas alimentam os pássaros. Essa cena gloriosa é emoldurada de um lado por um oceano ondulado sem fim e de outro por colinas de granito, sobre uma das quais se ergue o Cristo Redentor, com os braços abertos estendidos em um abraço protetor.
Esquerda: os portões
da Babilônia. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Direita: os Jardins Suspensos da Babilônia. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
A Babilônia foi uma cidade da antiga Mesopotâmia, situada nas planícies férteis entre os rios Tigre e Eufrates. Este foi inicialmente o local de uma pequena cidade semita acadiana, parte do Império acadiano, que floresceu em 2300 AC. A palavra grega para Babilônia (Βαβυλών) é uma adaptação do acadiano Babili que significa Portão de Deus. Na Bíblia hebraica, o termo Babilônia significa confusão. O historiador grego Heródoto listou a cidade como uma das sete maravilhas do mundo antigo, ao lado da Grande Pirâmide de Quéops. Dizem que os renomados Jardins Suspensos da Babilônia foram construídos na antiga cidade da Babilônia, e o padre babilônico Berosso, escrevendo por volta de 290 AC, atribuiu os jardins ao rei neobabilônico Nabucodonosor II, que governou entre 605 e 562 AC.
Segundo uma lenda, Nabucodonosor II construiu os Jardins Suspensos para sua esposa mediana, a rainha Amytis, porque sentia falta das colinas e vales verdes de sua terra natal. Se esses jardins existiram, eles foram destruídos algum tempo após o primeiro século DC. Há, no entanto, alguma controvérsia sobre a existência dos Jardins Suspensos, se foram uma construção real ou uma criação poética, devido à falta de documentação nas fontes babilônicas contemporâneas. Uma teoria recente propõe que os Jardins Suspensos da Babilônia foram de fato construídos para o palácio em Nínive do rei assírio Senaqueribe, que reinou entre reinou 704 a 681 AC.
A Babilônia, localizada no Iraque e perto de Bagdá, não deve ser confundida com o local que abrigava a seita dos Assassinos, do árabe ashshāshīn. O local que abrigou essa facção foi o castelo de Alamut, uma fortaleza montanhosa situada a aproximadamente 100 km de Teerã, no Irã. Lá, o misterioso Velho da Montanha, no final do século 11, treinava guerreiros para realizar espionagem e assassinatos. Também é possível que o termo hashishiyya ou hashishi tenha sido usado metaforicamente nos círculos muçulmanos no sentido abusivo, significando párias sociais ou gente de classe baixa. E a interpretação literal do termo que se refere ao povo nizari, como consumidores de haxixe e assassinos inebriados, pode estar enraizada nas fantasias dos ocidentais medievais.
O Refúgio
Vistas barrocas e cenas do passado,
Peças de Minas e China apresentados,
Ornados artefatos de morros distantes,
Em frente a mares Atlânticos trazidos,
Agora vislumbram as ondas do mar.
Subindo degraus de mármore rosa,
Chegamos a belas terras distantes,
Indianas planícies por encanto surgem,
Bordados mongóis decoram as vistas,
Cercadas de rendas em madeira talhada.
Seguindo chegamos em bela cena
De entalhos dourados e sonhos de Bali,
Quadros pintados retratam os dias
E a fonte refresca ambiente em paz
Convidando o passante a permanecer.
A amplo teto de céu nós subimos,
A Babilônia, suspensos jardins,
Crescem arbustos e flores colorem
Vista de rochedos que brotam do solo
E rodeiam refúgio e sonho.
© A.L.P. Gouthier, 2011
Escultura em madeira da Indonésia. Coleção de fotos A.L.P. Gouthier.
Eu me diverti muito planejando e criando esse refúgio, esse reflexo do meu amado Oriente, e também em descrevê-lo. Ele me fazia sentir como se eu estivesse longe da cidade que o arrodeava, e de volta às terras que o inspiraram, e protegida em meu refúgio mágico, vivendo uma vida de faz de conta na minha realidade alternativa. Pela descrição dessa antiga residência ficou obvio que eu era apaixonada pelo sudeste da Ásia. E daí em diante eu sempre decorei cada casa que tive com esses artefatos daquela parte do mundo, e muito especialmente meu quarto.
Anos depois, quando me deparei com o poema de Rudyard Kipling, “Mandalay”, fiquei maravilhada com sua beleza e naturalmente associei-me ao sentimento que dele irradiava. No poema, Kipling expressa o ponto de vista de um jovem soldado que deixou um amor na Birmânia. Da minha parte, eu via nele o anseio por aquela parte do mundo que me impressionara tanto com a beleza exótica de sua arte. E, assim, eu colecionei algumas das linhas do poema que continham as emoções com as quais eu me relacionei, para aprendê-las de cor, algo que acho difícil de fazer.
No pagode Moulmein, preguiçosa olhando o mar,
O silêncio é tão pesado, que dá medo de falar!
Mas "Se ouvis voz d’oriente, nada mais lhe proverá.”
Não! Nunca nada servirá, que o odor picante,
O sol e as palmeiras, e os sinos replicantes.
Mas tudo se passou – e longe eu andei,
Donde peixes voam, e a frota eu olhei,
No velho caminho de minha Mandalay.
Mas, como acredito ser um sacrilégio dissecar esse nobre poema, eu o apresento aqui no seu original completo, e por mim traduzido, no qual eu consegui manter o ritmo, mas foi-me impossível de alcançar a efetiva rima do original inglês.
Mandalay
No Moulmein pagode, preguiçosa olhando o mar,
Uma jovem da Birmânia, em mim está a pensar;
O vento nas palmeiras e sinos de templos dizem:
"Volte, soldado britânico; volte a Mandalay!"
Retorne a Mandalay,
Onde estava a Flotilha:
Podes ouvir seus remos de Yangon a Mandalay?
Na rota de Mandalay,
Peixes brincam a voar,
E aurora, como raio, vem da China a chegar!
Sua blusa amarela e o boné verde eram,
Seu nome Supayalat – como a rainha Thibaw,
Eu primeiro a vi fumar, longa e branca cigarrilha,
E trocar beijos cristãos ao pé de um ídolo pagão:
Um deus feito de argila
Que chamavam o Grande Buda,
Mas pouco lhe ligaram os deuses quando eu a beijei!
Na rota de Mandalay ...
Névoa em campos de arroz quando o sol lento caía,
Pegava ela o seu banjo e cantava Kulla-lo-lo!
Com o braço no meu ombro e rosto contra rosto
Vimos barcos a passarem carregados de madeira.
Elefantes toras elevam
Em riacho lama sujam,
O silêncio tão pesado, por temor pouco falei!
Na rota de Mandalay ...
Mas tudo se passou – e muito longe eu andei;
Não há ônibus que vá do Banco a Mandalay;
Entendo aqui em Londres o que um velho então disse:
"Se ouvis voz d’oriente, nunca mais nada terá.”
Não! nada nunca amarás,
Que aroma d’alho picante,
E o sol e as palmeiras, sinos de templo replicantes;
Na rota de Mandalay.
O couro a gastar em pedras a andar,
E a chuva inglesa nos ossos febre dá;
As moças com quem ando, de Chelsea até a Strand,
Falam d’amor sempre, mas o que entendem?
Pegajosos rostos e mãos –
O que entenderão?
Tenho doce donzela em terra verde e limpa!
Na rota de Mandalay ...
Enviem-me leste ao Suez, onde iguais todos viver,
Onde não há Mandamentos e homens podem beber;
Os sinos do templo chamam, e é lá que quero estar
Junto ao velho pagode, preguiçoso olhando ao mar;
Na rota de Mandalay,
Onde esteve a Flotilha,
Com enfermos embaixo toldos, a caminho Mandalay!
Oh rota de Mandalay,
Peixes brincam a voar,
E aurora, como raio, vem da China a chegar!
Rudyard Kipling
Tradução de A.L.P. Gouthier
Joseph Rudyard Kipling nasceu na Índia em 1865, foi enviado à Inglaterra para estudar e retornou em 1882, onde permaneceu por mais dez anos. Mas a Índia inspirou grande parte de seu trabalho. Quando eu visitei o Sudeste Asiático pela primeira vez, em 1970, fiquei impressionada para sempre com sua beleza e seu charme. E, assim, onde quer que eu estivesse, sempre criava para mim refúgios orientais onde morar, mas nunca mais tive um com um oceano em frente, aquela visão vasta, infinita e ilimitada. E aí me perguntava se eu também flutuava nesse oceano como as ilhas vistas ao longe. Mas circunstâncias logo me levaram a voar longe dali. Nem lá eu estava segura.
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