IN DEFENS - NEMO ME IMPUNE LACESSIT

Leitora Desapegada

Capitulo 30 Leitora Desapegada

Tempo Coberto: 1988 a 2015

Locais: Belo Horizonte a Londres.


            Alguns anos antes da virada milênio, eu fui convidada por Marcio Mello, que eu recentemente havia conhecido, para um jantar em seu apartamento em Belo Horizonte. Houve um momento durante a festa, quando olhei em volta, enquanto ouvia a conversa dos outros, percebi que não tinha nenhuma ideia sobre o que estavam falando. Eu imaginei que eles provavelmente estavam apenas relembrando eventos que haviam vivenciado juntos, e não tópicos mais genéricos, como o noticiário ou algum outro assunto que permitisse a um estranho entre eles participar da conversa. E, com muita frequência, reagiam aos comentários um do outro com exclamações como: "Não foi legal, cara" ou "Não é divino".

Nos anos anteriores, eu havia conhecido superficialmente várias das pessoas ali presentes, portanto não sabia muito sobre elas, e mesmo entendendo as palavras que diziam, a maior parte de suas conversas nada significava para mim. Enquanto eu me perguntava o que estava fazendo naquele lugar, eu olhei em volta novamente, pensando que isso não poderia ser mais entediante! Foi quando notei um homem loiro sentado não muito longe de mim, também silencioso naquele momento em particular, e ele não poderia ter sido mais obviamente inglês. Então, decidindo arriscar, perguntei-lhe em inglês:

"Falas português?" Ele respondeu "Sim".  

Eu continuei: "Eu falo inglês".

Depois disso, permiti que o tempo passasse em silêncio, sem mais comentários. Então ele pareceu acordar de um profundo devaneio no qual estava imerso, olhou para mim pela primeira vez e disse que seu nome era Michael Wade, e nós começamos a conversar.

Uma reação curiosa, pensei. Eu me perguntei o que havia passado pela sua mente durante os primeiros momentos em que eu falara, e também durante nosso silêncio subsequente. E o leve tremor? Eu interpretei isso como a reação educada de um inglês à etiqueta convencional inglesa – se alguém lhe dirige a palavra, deve pelo menos dar uma resposta educada!

Na sociedade esnobe do Brasil, as pessoas não seguem as mesmas regras de comportamento social da Inglaterra. Mais provável que eles se preocupem em prestar a atenção somente às pessoas que já conhecem e estudiosamente ignoram as desconhecidas. Na verdade, eu não sei o que os convenceria a se dignarem a falar com um estranho em uma festa ou com alguém por acaso sentado ao lado deles em um jantar. Provavelmente, eles nunca se sentariam ao lado de um estranho, e as configurações de lugar preestabelecidos em jantares são desconhecidas. Em vez disso, eles tendem a se dar apenas com amigos e, na maioria das vezes, até onde posso ver, levantam o nariz e evitam o contato com alguém a quem desejam demonstrar superioridade social. Por fim, eu tive a impressão de que a maioria das chamadas pessoas consideradas elegantes não conhecem ou não desejam praticar as regras formais internacionais de etiqueta. E acredito que, para eles, eu era pior do que alguém de fora – na verdade eu era uma local rejeitada.

Lembro-me de ir a uma festa com meu amigo Eduardo Pinheiro e, quando nos juntamos a um pequeno grupo de pessoas, ele me apresentou a uma colunista social chamada Anna Marina. Eu já havia antes ouvido falar dela, mas não me lembrava de tê-la conhecido. Ela imediatamente exclamou: “Oh, Anastásia Luciânia!”, e então me olhou de cima a baixo e se virou sem dizer mais uma palavra. Eu fingi não perceber e também desviei o olhar como se de repente eu estivesse distraída.

Em outro coquetel, alguns meses depois, aproximei-me de um grupo de pessoas que incluíam um senhor mais velho e elegante chamado Moacir Carvalho de Andrade, que eu não conhecia anteriormente, e que depois me disseram ser o dono de uma grande concessionária local de automóveis chamada Mila. Ao ouvir meu nome, ele me disse o quanto se divertira com algumas notícias particularmente desagradáveis ​​na imprensa local sobre a minha família. Como eu havia achado a notícia caluniosa de muito mau gosto, eu silenciosamente me encolhi em horror. Surpreendeu-me como as pessoas achavam que eu estaria acostumada com vulgaridade.

Pouco a pouco, fiquei cansada das opções sociais locais e, no final dos meus dez anos lá, não fiz mais qualquer esforço para participar de nenhuma função. Mas, em 1999, como meu filho Perseus ainda estava na escola americana, fiz um esforço para ir a uma reunião de pais, após a qual bebidas e comidas foram servidas e o convívio começou. Eu não reconhecia ninguém na reunião. E então apenas me servi de suco de frutas e alguns canapés e fiquei de um lado para desempenhar o meu papel habitual de observadora desapegada. Foi quando notei uma mulher americana sentada sozinha no meio da multidão, conversando e sendo cuidadosamente evitada por todos que passavam por ela. Ela tinha no rosto uma expressão de terror e incompreensão. Eu pensei comigo que deveria me sentar ao lado dela para tentar aliviar sua provação, mas, em vez disso, eu me afastei da cena angustiante e voltei para casa. Nunca me perdoei por ter evitado essa oportunidade de realizar um ato de bondade.

Então, eu aqui retrato em colorido o mundo em que nasci, onde poucos se importaram em saber como eu era como pessoa; e para a maioria das pessoas, eu sempre fui somente filha de alguém que eles invejavam ou condenavam. Eles criaram sua própria versão da minha vida e forneceram motivos para minhas ações, que nada tinham a ver com o verdadeiro eu. Devem ter pensado que, como se dizia que meu pai tivera uma vida sexual ativa fora de sua casa, podia-se concluir que sua família estava contaminada, e que eu também seria uma pessoa de moral questionável. Sempre os condenei muito por isso, e achei a versão fictícia da minha pessoa altamente ofensiva.

Assim que pude, depois daqueles horríveis dez anos de volta à minha cidade natal, mudei-me para o Rio de Janeiro, mas nunca me senti em casa lá. Então, gradualmente, aumentei o tempo que passava no Reino Unido, até que estava novamente vivendo na minha Ilha de Paz no Atlântico Norte. E com o passar dos anos, vi Michael Wade muitas vezes, no Brasil e na Inglaterra.

Michael havia se casado com Isabel Barbosa, uma brasileira do Rio de Janeiro, que eu conhecera em algumas das festas do Olivier Mourão. Mike me contou a sua primeira impressão do Rio de Janeiro, quando o navio em que estava, em 1972, entrou na Baía de Guanabara. Ele ficou impressionado com a beleza – o que é um fato, pois, é realmente impressionante. No entanto, alguns anos depois, a descrição feita da cidade por minha filha foi: "Uma coleção feia de edifícios em um local muito bonito".

Eu nunca consegui ver o Rio de maneira diferente do modo como o vi ao longo da minha vida – um resort à beira-mar para passar as férias de inverno, do qual eu conhecia apenas o litoral e nunca me aventurara pelas ruas adentro. Minha família sempre passara ali o mês de férias escolares de julho, e só socializávamos com outros mineiros, sem nunca nos preocuparmos em fazer amigos locais. A única coisa que mudou para mim é que, agora, prefiro ir ao verão, quando a Europa está fria.

Com o passar dos anos, continuei em contato com Michael Wade, que, como eu, morava na Inglaterra e no Brasil. Fiquei chocada, muitos anos atrás, ao ouvir que ele havia sido diagnosticado estar num estágio avançado de câncer. Ele me contou que, imediatamente após esse diagnóstico, decidiu ir ao Brasil para passar o tempo que lhe restava. Lá ele falou a todos sobre sua condição, muitas vezes com humor, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E tendo decidido aproveitar a vida, sem se preocupar mais com o futuro, a sua saúde tomou um rumo milagroso para melhor!

Nos 16 anos seguintes Mike teve uma sequência de más notícias, operações e tratamentos, mas as boas novas prevaleceram. Ele sempre surpreendeu os seus médicos com o que eles chamaram de regressão espontânea de seus tumores malignos. Na verdade, ouvi-o dizer que os seus 16 anos com câncer foram os mais felizes de sua vida. Inclino reverencialmente minha cabeça para o incrível poder da mente.

Como seus anos de formação foram passados ​​no calor de Singapura, Mike nunca gostou do frio. Ele me contou o quanto sofrera com o frio quando foi enviado para um internato no Reino Unido e, consequentemente, ele sempre tenta acompanhar o verão. Eu tenho uma teoria de que sempre ansiamos pelas condições climáticas dos lugares em que fomos muito felizes. Assim como eu estava tão entusiasmada com meus estudos em Boston, e mais tarde apaixonada por Joseph Eros, eu acho que o inverno é reconfortante, e adoro a neve. Entretanto eu mantenho as minhas casas em cerca de 25 graus centígrados durante todo o ano. A maioria dos ingleses se orgulha em resistir a temperaturas mais baixas em casa, mas esse não é um hábito que adotei.
            Quando eu primeiro pensei em escrever um livro, em 2003, depois de voltar para Londres, eu tentei me preparar de todas as maneiras possíveis, pois não tinha certeza de como fazê-lo. Eu fiz então vários cursos de Escrita Criativa no City-Lit, em Holborn, e os cursos de que mais gostei foram os de Nicholas Murray. Ele nos incentivou a escrever ocasionalmente na sala de aula, e também em casa. Eu sempre escrevi peças que mais tarde poderia usar nos livros que planejava. E durante minhas aulas na City-Lit, eu também pratiquei a arte de observar as pessoas.


Leitora Desapegada

Perdida em desapego

O mundo eu observo

E pessoas ao redor.

Mas enquanto olho,

Um vira-se em volta.  

Eu tento discernir

Sinais reveladores

De seus pensamentos.

Observando um homem,

Sua mente tento ler,

E com outra conecto

Através de um sorriso.

O que querem dizer

Movimentos de mãos,

O piscar dos olhos,

Assustados por palavras.

Embora não planejados,

Os sinais informam,

Há tanto a perceber.

De repente, alguém

Olha para mim.

Não quero me entregar!

Olho para baixo, 

Finjo distração.

Serão leitores também?

O que veriam em mim?

Julgarão só o que veem,

Sem nada mais contar,

Nada prévio a julgar.
Sem motivos falsos,

Malícia a disfarçar,

Ou mentiras a pensar. 

Aqui eu sou livre, 

Não carrego culpa

Que não era minha,

Mas que eu sofri. 

Brisa é sempre fresca,

Eu não sinto o ódio,

 Aqui posso respirar

Sem me preocupar.  

© A.L.P. Gouthier, 2011.

Observar pessoas é um exercício que pratiquei ao longo da vida, e é infinitamente mais gratificante do que conversar. Comecei essa prática na escola, aos 4 anos de idade. Com o tempo, refina-se o conhecimento do ser humano sobre a segurança do silêncio. Ao viajar, por exemplo, pode-se sentar-se em um canto discreto de um templo e observar. Há muito o que aprender. E a única alternativa para isso é a leitura.

Ao observar e escutar conversas, pode-se ler mentes sem se expor ou se envolver, já que em silêncio a pessoa nunca se compromete. No entanto, escrever é como fazer um discurso silencioso no qual os pensamentos de leitores raramente retornam ao escritor. No entanto, falar é altamente perigoso. Nem sempre é fácil dedicar-se inabalavelmente ao desapego, especialmente quando assolados por sentimentos de solidão.

Acredito que, com o passar do tempo, precisamos de menos exposição comunitária do que antes, mas comigo a mudança foi abrupta, repentina. Percebi que agora, quando me aventuro em ocasiões de convívio, logo me canso e anseio pela paz e sossego de minha casa, onde minhas horas envoltas em silêncio são frequentemente povoadas pelos personagens dos livros que leio. Eles tornam-se amigos com os quais posso concordar ou discordar, mas são sempre companhia. E quando escrevo, o mundo à minha volta desaparece, o tempo passa despercebido, e fico feliz e tranquila. Mas a maior vantagem desse modo de ser é que ele proporciona um grande nível de desapego do mundo exterior.

Uma vez, eu me deparei com um texto escrito por David Brooks sobre a diferença entre o 'escritor envolvido' e o 'escritor alienado' no mundo de hoje: "O escritor alienado acredita que escrever é mais ensinar do que uma forma de ativismo". Eu não tenho certeza se sou uma escritora alienada ou comprometida. Uma definição que encontrei do verbo "ensinar" lista: instruir, educar, treinar, disciplinar. Enquanto a definição de ativismo não político que mais se aproximava do meu coração era: uma ação para alcançar um fim. Desse ponto de vista, eu penso que o propósito de escrever é mais de um ativista do que de um professor.

E a definição que encontrei para um escritor não politicamente engajado é aquele que está muito ocupado e ativo. Enquanto Brooks ainda o qualifica: "O escritor envolvido está disposto a ser repetitivo, porque é assim que se torna um polo inevitável no debate". Então, em qual foi que eu me tornei? Uma observadora desapegada do mundo a meu redor e uma escritora comprometida, de dentro da segurança de minha invisibilidade.

No final do século 16, a palavra ‘desapegado’ estava associada ao senso de ‘descarregar uma arma, do francês détacher. Mas a palavra agora significa libertar-se, separar, segregar, dissociar, alienar, isolar. Um exemplo adequado do uso desta palavra é: "Ela permaneceu uma observadora desapegada das reações aos seus escritos". Nesse caso, poderia implicar: remoto, distante e silencioso.

            Há vários anos, Michael Wade, que escreve lindamente, revê minhas composições em inglês. Gosto muito da nossa parceria literária e penso nelas como lições de estilo. Não tenho certeza se sou uma péssima escritora ou se prometo excelência, mas, como dizem, a prática leva à perfeição. E como estabeleci para mim a missão de escrever minha versão da história de minha família, eu tenho muito trabalho pela frente.

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