Tempo Coberto: 1945 a 1987.
Localização: Belo Horizonte.
Eu mudei o meu nome para Anastásia após eu me metamorfosear através de meu amor por Joseph Dallarosa, que, por sua bondade se tornou meu Eros – ou o deus do amor. Mas a denominação
Perséphone somente seria adicionada ao meu nome após minha união com Edward Malamos, quando ele se transformou em Edward Hades – o deus do submundo.
Devo explicar que nunca
planejei ser escritora, mas queria transmitir as histórias interessantes ouvidas por outras pessoas, como da minha avó materna Teresa, e minhas próprias observações do mundo a meu respeito. Como resultado, tornei-me escritora
muito tarde na vida, e após realizar meu sonho de trabalhar como administradora de meus negócios. Mas esse projeto literário começou numa época na qual eu tinha medo de me expor ao mundo. Por isso, achei melhor me esconder
atrás de um pseudônimo. Mas o tempo muda tudo e eventualmente acalmou meus temores.
Minha infância em Belo Horizonte foi uma época de perfeita felicidade no seio da minha
família, da qual eu pensava ser o centro, pois foi assim que me senti por muitos anos. Naquele mundo não havia nuvens, medos, ameaças. Tais horrores surgiram apenas mais tarde no mundo exterior, que se mostraria cruel, e onde nunca seríamos
totalmente aceitos. Meu mundo privado não mudou muito à medida que eu cresci, ou enquanto eu ainda morava em Belo Horizonte.
Estudei Administração de Empresas em uma universidade
nos Estados Unidos. Um pouco mais tarde, aprendi a pilotar pequenas aeronaves na Inglaterra, para poder ir ao campo com frequência, para trabalhar, como meu pai. Mas de repente, tudo mudou. Meu pai mudou, minha mãe, coitada, ela também
mudou – e eu também.
Depois de todos esses anos, continuo administrando meu próprio negócio e tentando obter sucesso para provar a mim mesma que consigo, ao mesmo
tempo em que espero mostrar que eu herdei essa característica do meu pai. Mas também acho que essa persistência faz parte da minha antiga compulsão de imitá-lo. Ele era meu ídolo.
Eu sempre guiei minha própria vida com mãos muito fortes. Tomei decisões cotidianas determinando o que era certo ou errado para mim, nunca me deixando desviar do caminho escolhido. Minha filosofia pode ser resumida
assim: ser forte e estar no controle da própria vida. Quando nasci, a Segunda Guerra Mundial ainda prosseguia na Europa. Mas esse conflito distante não fez muita diferença para a vida da maioria das pessoas em nosso vale, logo ao norte
do trópico de Capricórnio, onde minha vida começou. De fato, os anos da guerra passaram quase pacificamente e sem intercorrências, e minha chegada ao mundo certamente teve muito mais impacto para a minha família imediata do
que um conflito distante.
O final de novembro é na estação das chuvas, que anuncia a chegada do verão em nosso canto do Hemisfério Sul. Então, provavelmente
chovia quando eu nasci, embora ninguém nunca tenha me informado com certeza. Certa vez, perguntei para minha mãe qual a hora exata do meu nascimento. Ela simplesmente me ignorou dizendo que não conseguia se lembrar, mas que deveria ter
sido em um momento complicado, pois eu sempre fui tão difícil! Fiquei furiosa e fui para o meu quarto, bufando. Ela nunca se preocupou com detalhes, mas eles eram muito importantes para mim. Eu sempre amei detalhes. Todo pequeno aspecto minúsculo
de uma história me interessa, e acho fascinante todas ações e reações sobretudo.
Assim que consegui avaliar o meu entorno, achei que vivia num céu que consistia
de vastas extensões verdes para brincar à sombra de muitos tipos de árvores com suas folhas tremulando na brisa suave, seus frutos fáceis de colher, e onde as flores floresciam durante todo o ano. Uma variedade de animais vagava
por lá, como se fosse para minha diversão, pássaros gorjeavam e pequenos tatus se transformaram em bolinhas ao meu toque. Este paraíso particular era – e ainda é – conhecido como a Chácara.
Nossa casa estava situada nos arredores de Belo Horizonte, capital do montanhoso estado de Minas Gerais. Esta cidade possui em sua parte sul uma grande muralha de montanhas, que anteriormente poderiam ter servido como
proteção contra intrusos. Consequentemente, seus primeiros habitantes não gostavam de forasteiros!
Dizem que nosso temperamento reservado é uma consequência de nossa
localização geográfica, ou talvez as limitações visuais de nosso horizonte nos incentivem a olhar para dentro. Mas essa característica é provavelmente o resultado do isolamento em que as pessoas viviam quando
as viagens só podiam ser feitas a cavalo, com somente carroções puxados por mulas para transportar a carga procedente das principais cidades ao longo do litoral.
Foi apenas na
juventude de meu pai que ferrovias foram construídas e, eventualmente, estradas para os primeiros carros foram cortadas pelas colinas mais suaves, circundando as montanhas de ferro. Meu pai sempre dizia que havia vivido na época quando o acesso
a muitas áreas do interior ocidental do estado havia mudado diretamente do cavalo para avião, sem nada no meio, porque muitas vezes não existiam ainda estradas. Assim, seu meio de transporte por algumas dessas áreas selvagens, onde
não havia pistas de pouso, era um avião muito leve conhecido como Piper Cub. Ele costumava nos dizer que essas aeronaves podiam pousar em quase todo lugar.
Depois que eu nasci, meu
pai nos levava para passar férias nessas terras ocidentais distantes onde tínhamos fazendas e plantações. Íamos em um Cessna de quatro lugares, comigo sentada na frente com ele, e minha mãe e irmão atrás
de nós. E assim que minha irmã nasceu, ela também veio.
Durante os voos, eu fingia estar ajudando meu pai a pilotar o avião, um brinquedo que ele encorajava, para o horror
de minha mãe, que sempre tinha um pouco de medo. Eu, no entanto, queria aprender a operar as alavancas e a ler os controles, e apontava para os mostradores que indicavam mudanças de direção ou altitude. Como sempre quis imitar meu
pai, aos 16 anos comecei a ter aulas de voo.
No Brasil, uma chácara é uma casa cercada por um grande pomar, geralmente nos arredores de uma cidade. Esta palavra não existe em
Portugal e só a encontrei, com o mesmo significado, em Goa, onde um dicionário luso-asiático explicava que a palavra xácara era derivada do sânscrito.
A
mesma palavra aparece no idioma quíchua, que é uma língua ameríndia originalmente falada no Império Inca e ainda usada por cerca de oito milhões de pessoas na América do Sul. E nas Ilhas Canárias, chácaras
são um tipo de castanhola. Este é um instrumento de percussão que consiste em um par de conchas côncavas unidas por uma corda. Na região, acredita-se que a palavra possa estar relacionada à palavra šakar,
que significa casco nos idiomas berbere ou amazigh, e em dialetos indígenas do norte da África.
Meu pai comprou a chácara, onde ficava nossa casa, junto com sua antiga
fazenda, no início dos anos 1940. Era então localizada nos arredores da cidade, separada pelo rio Arrudas e por um pântano onde sapos coaxavam à noite. Não tenho certeza se realmente me lembro disso ou se é apenas minha
imaginação.
Com o tempo, a cidade nos cercou e apenas muito depois, após quase vinte anos de paz, parte de nosso parque foi cortado para dar lugar a uma nova linha de ferro.
Mas continuou bonito, principalmente o jardim que cercava a casa. E agora é mais esplêndido do que nunca, pois as árvores tiveram muito mais décadas para crescer.
No entanto,
lembro-me dos primeiros anos lá, colhendo frutas, vendo flores e brincando de bonecas, enquanto cegonhas brancas tomavam banho em um laguinho próximo e os pássaros voavam dentro de um grande santuário de aves não longe da
casa. Araras coloridas e papagaios verdes exibiam sua plumagem, pássaros maiores, como seriemas e mutuns, passeavam bicando restos comestíveis do chão, enquanto pássaros menores flutuavam nessa estrutura grande o bastante para conter
árvores frutíferas e uma fonte. Por cinco anos eu fui filha única e aproveitei cada momento disso. Minha mãe assegurava para que eu estivesse sempre confortável, meu pai me dava tudo o que eu queria e eu estava acostumada
a governar o mundo, ou pelo menos era assim que eu pensava.
Lembro-me da época, antes do nascimento de meu irmão e irmã, em que a entrada de nosso parque ficava à frente
da casa, ao leste e levemente morro acima, na direção da Rua Patrocínio, como é chamada agora. Naquela época, a estrada que levava do portão externo à antiga fazenda original era ladeada por árvores flamboyant,
com suas pequenas flores vermelhas e folhas tremendo na brisa.
À esquerda do antigo portão havia uma casinha, onde madame Marguerite Richardson, madrinha de minha mãe, veio morar.
Ela acompanhou a família de minha mãe quando eles se mudaram de Diamantina para a capital. Quando meu pai se casou com minha mãe, ele também se tornou responsável por Madame.
Em 1950, mais de cinco anos depois de nos mudarmos para a antiga fazenda, meu pai construiu uma casa maior, no mesmo local. Com o passar do tempo, ele comprou mais e mais terras ao redor da área original, de modo que a região acabou
se tornando um parque muito grande, com muitas outras dependências e um bosque a nordeste.
Sua aquisição final foi uma bela área ao norte, ou seja, à esquerda de
nossa casa, quanto se olhava dela. Essa gleba, na qual havia várias casas, tinha sido a principal instalação de uma empresa americana de gasolina, que teve que ser realocada para o novo parque industrial da cidade, fora do perímetro
da estendida Belo Horizonte. A saída de nossa casa foi então reposicionada na Rua Conquista, onde ainda permanece.
A casa principal dessa nova área adicionada ao nosso terreno
tornou-se residência de minha avó Teresa. Ali ela morou com o filho solteiro, meu tio Lauro. Agradável, com dois quartos de dormir, a casa era cercada por jabuticabeiras e goiabeiras, e estava a cerca de 250 metros da nossa residência
principal. Esse arranjo provou ser especialmente benéfico para nós, crianças, que gostávamos de ter vovó Teresa por perto, enquanto crescíamos. Eu costumava conversar com ela enquanto ela se sentava no seu sofá
favorito fazendo crochê. Mas a presença dela também fez com que nossa chácara fosse o local de encontro favorito de todos os membros da família de minha mãe, nos fins de semana.
Caso partíssemos de nossa casa para a direita, na direção oposta à casa de minha avó, além do aviário e da piscina, uma trilha levava ao limite sul da propriedade. Ali, esse caminho central
terminava abruptamente em uma plataforma natural, a partir da qual podíamos avistar a cidade além do rio Arrudas. No primeiro plano, à direita, desse estágio natural, o solo cedia drasticamente, numa rampa perfeita para deslizarmos
em direção ao alto muro de proteção situado lá em baixo. Este muro marcava o fim do penhasco e o início da planície ao longo da qual corria uma ferrovia que contornava esse lado do terreno, a nossa fronteira
ocidental.
Mas, à esquerda dessa plataforma central, a terra subia abruptamente até a fronteira leste mais alta, onde nossos muros circulares voltavam a nos proteger. As fortes chuvas
de verão, sempre seguidas de sol escaldante, haviam formado profundas fendas nessa encosta. Eu as via como cavernas misteriosas, que eu adorava explorar com minha prima Sandra.
A melhor parte
de nossa casa, no que me dizia respeito, não era o lindo parque, mas o meu quarto. Era uma área espaçosa, mobiliada com alguns itens lindos que minha mãe havia mandado fazer especialmente quando a nova casa foi construída.
A madeira era delicadamente esculpida em curvas agradáveis e pequenas flores, pintadas em tons sutis, enquanto tapetes e cortinas macios completavam a imagem de paz e conforto.
Uma característica
inesquecível desse quarto era a visão de uma grande paineira que se erguia logo além das duas amplas janelas. Como estava no primeiro andar, eu podia olhar diretamente para seus galhos largos, e então ver os pássaros, em
seu habitat, e, na primavera, a exuberância de flores rosa.
O quarto foi o ponto focal de minhas agradáveis memórias naquela casa durante os trinta anos ou mais em
que minha família morou lá. Depois que fui para a universidade, aos 19 anos, antes de cada feriado eu ansiava a voltar para o meu quarto. E foi para lá que mais tarde levei meus filhos, em nossas longas visitas anuais.
Nós moramos nessa grande casa branca até pouco antes da morte de minha mãe, em 1987. Deixá-la marcou o fim de um longo capítulo de nossas vidas, após o qual eu não tinha
mais casa naquela cidade, e me sentia como uma árvore arrancada. Foi o nosso paraíso, nosso lugar de paz e é a casa que descrevo no poema.
Chácara
Belos contornos de ferro batido
Adornavam a visão de lindos jardins
Por amplas janelas em todos os lados
Abrigando, velando e protegendo.
Prados
sombreados por árvores perenes,
E flores florescem em justas estações.
Abundância de aves, araras, pavões
Voavam, andavam e bebiam nas fontes.
Raios de sol nos campos brilhavam,
Ou gotas de
chuva tamborilavam,
Enquanto folhas ao vento dançavam
Na calma
dos dias ou noites sem fim.
Meu quarto encantado cortinas de seda,
Contornos barrocos em madeira talhados
Em flores brotando em tons delicados
Tapetes macios no piso parquet.
Fora no escuro sombras guardiãs
Deslizam silentes e fogem ao luar,
Impedindo o acesso de vil espectros
Além de muralhas e altos portões.
Vidas felizes por anos vividas,
Assim isolados em terra encantada,
Dentro verdejantes extensos gramados,
Escondida e secreta de vistas externas.
Raros
passeios por dentro à cidade,
Jovens narizes contra janelas
De
carro passado, olhando as vistas
Das selvas de ruas desconhecidas.
© A.L.P. Gouthier, 2012
A Chácara - sua varanda, coleção de fotos A.L.P. Gouthier,
e a localização da casa
em Belo Horizonte.
O período escolar no Hemisfério Sul termina no final do ano antes do Natal, quando começam
as longas férias de verão. Em julho, há também um mês de férias de inverno. Essa é uma época do ano muito agradável no Brasil tropical, especialmente ao longo do litoral, onde sempre faz muito calor
no verão.
Durante o período letivo, nossa vida em família nos dias úteis seguia um padrão regular, ou seja, café da manhã, bem cedo, e sermos levados
para o colégio, conduzidos por um motorista e supervisionados por uma babá – e mais tarde o mesmo acontecia na volta para almoço em família. O almoço sempre foi o principal evento do dia, o qual meu pai nunca perdeu.
As tardes eram ocupadas por trabalhos de casa, aulas particulares, e, depois de um jantar cedo, os mais jovens iam para a cama. Os outros podiam descer ao nosso cinema em casa, para assistir a um filme. Como o meu pai era dono da maior parte dos cinemas na
cidade, os filmes eram passados para nós muitas vezes antes de serem apresentados ao público.
Todos os anos, nas férias de inverno de julho, minha mãe gostava
de viajar de carro para o Rio, levada pelo motorista. Ela dizia que iam devagar e apreciando a paisagem. O trajeto levava mais de sete horas, e eu odiava. Para minha sorte, como meu pai julgava que as estradas não eram muito seguras, ele permitia que
eu fosse de avião com minha babá, o que eu preferia.
Em uma dessas ocasiões, meu pai me deu dinheiro para comprar roupas no Rio e, quando lá cheguei, pedi minha babá
que me levasse à minha loja predileta, a Bonita, em Copacabana. Lá, eu experimente várias coisas e fiz muitas compras, as quais deixei na loja para alterações e entrega no dia seguinte. Nós morávamos no Morro
da Viúva, no Flamengo, em um grande apartamento acima da casa do meu tio Geraldo. Ele era irmão do meu pai. De nossas janelas, tínhamos vista para o oceano cujas ondas batiam contra pedras de uma baía ampla. Muitos anos depois essa
área se tornou um belo parque construído sobre litoral aterrado.
No dia seguinte à minha expedição de compras, quando alguém anunciou a entrega de várias
caixas, minha mãe disse que não eram nossas, que deviam ser para outro endereço. Mas, como eu as esperava, rapidamente disse por trás dela que, sim, eram minhas. Ela olhou estranhamente para mim. Eu anunciei, porém, que havia
ganhado dinheiro de meu pai para fazer as compras, e que tinha estado na loja no dia anterior com a Dorinda. Feliz, peguei meus pacotes e fui para o meu quarto.
Dorinda era uma espanhola que trabalhava
em nossa casa em Belo Horizonte como costureira. Como já contei em capitulo anterior, depois que voltava da escola, eu ia frequentemente ao quarto de costura para conversar com ela sobre a vida na Espanha. Ela me contou sobre a neve e sobre cerejas
negras colhidas diretamente das árvores, o que achei muito interessante. Dorinda também fazia roupas de bonecas para mim, que escondíamos quando minha mãe se aproximasse, porque ela dizia que eu não deixava Dorinda trabalhar.
A passagem de roupa da casa também era feita nessa área por algumas das minhas pessoas favoritas. Uma delas era a velha Maria de Lourdes, passadeira. Era assim que nos referimos a ela. Ela era
mágica com um ferro de passar roupa, e a única pessoa capaz de lavar e prensar roupas particularmente delicadas, como os meus vestidos de batizado, de primeira comunhão e vestidos de festa especiais, que haviam sido habilmente confeccionados
por uma famosa bordadeira chamada Carmen Marques. Suas criações delicadas e inestimáveis são obras de arte. Nós as guardamos e elas também foram usadas por minha filha. E eventualmente, serão usadas por
minhas netas em ocasiões especiais.
No final do período escolar, em dezembro, a família se preparava para o Natal. Minha mãe dava um jantar anual no dia 24, para o qual
muitos da família vinham. Ela sabia dar festas e a comida era maravilhosa. Meu pai nunca ficava muito tempo, mas nós nunca deixávamos de nos divertir imensamente.
Depois do Natal,
viajávamos frequentemente para Carrasco, no Uruguai, com parentes da família de meu pai. Carrasco é uma elegante área residencial nos arredores de Montevidéu que surgiu em torno do antigo e palaciano hotel. Essas férias
geralmente duravam um mês e eram especialmente agradáveis pela presença de nossos primos.
De volta à casa, meu pai costumava ir à refinaria nos fins de semana,
mas retornava sempre às tardes de domingo para ouvir sobre os acontecimentos dos dois dias anteriores. Ele era muito exigente com sua família e estava interessado em tudo o que fazíamos. Como ele havia treinado como médico, era
particularmente preocupado com nutrição. Ele classificava uma série de alimentos como não saudáveis, especialmente se eles apenas engordavam e não eram nutritivos. Como ele condenava com veemência alguns pratos
saborosos favoritos – como massas, batatas fritas ou arroz branco e, principalmente, sobremesas – esses só podiam ser servidos nos fins de semana quando ele não estava lá. No campo da alimentação saudável,
ele estava definitivamente à frente de seu tempo.
Embora meus pais não gostassem de se socializar e convivíamos principalmente com as famílias de parentes, houve um evento
em casa quando eu tinha cerca de 10 anos, para o qual não familiares foram convidados. Foi uma festa magnífica para comemorar o noivado da minha prima Eliana Nelson de Senna, filha da irmã do meu pai Naytrez, com Danilo Bonetti. Um conhecido,
Pacífico Mascarenhas, que foi presidente do Minas Tênis Clube de Belo Horizonte por muitos anos, recentemente deu-me um registro do jornal Estado de Minas, com a lista de convidados dessa festa, o que certamente me impressionou pela notoriedade
de muitas pessoas na lista de convidados. Com o passar do tempo, porém, meu pai preferiu cada vez mais reuniões menores e mais particulares e, quando era obrigado a participar de uma festa, escapava rapidamente, como de costume, para o silêncio
de seu escritório.
Muitos anos depois, ele decidiu que nossa casa era muito perigosa e difícil de proteger. Eu não sei se isso foi por causa de nossa incômoda visibilidade,
ou se foi por causa da deterioração geral da segurança pública. Mas nós nos sentíamos seguros lá durante o dia, com muitos jardineiros e motoristas por perto, e à noite vigias circulavam a casa e a patrulhavam
com cães. Mesmo assim, meu pai insistia para que nos mudássemos para outro lugar, mas minha mãe se recusou a fazê-lo. Sempre que ela tomava uma decisão, nada a mudava. Ela me dizia: “Você e seu pai acham que mandam
em mim, mas estão enganados. Eu só faço o que eu quero!”
Hoje em dia, quando volto a Belo Horizonte, às vezes vou ver a antiga casa. Gosto de estar lá sozinha
para poder pensar no passado. Por algum tempo eu olho em volta e, na minha mente, vejo como foi a nossa vida naquele local de paz. Éramos tão felizes dentro daqueles muros que nos separavam da cidade lá fora, o mundo cruel que mais tarde
nos condenou. Embora nunca tivéssemos feito nada para merecer isso. Culpados, sem direito à defesa. Mas, naqueles dias da infância, eu ainda não havia sentido essa condenação, e ainda não sabia que não
seria convidada às casas de muitas pessoas ou para festas.