Tempo Coberto: 1974 a 1983
Localização: Londres, Japão, Bali,
Bombaim, Belo Horizonte, Rio de Janeiro.
O preconceito
é definido como uma opinião irracional formada sem raciocínio ou muito conhecimento. Eu levei uma vida inteira para compreender por que eu era vítima disso, e entender a origem de tais emoções irracionais. E sendo
de uma família de ascendência portuguesa, que ao longo de vários séculos criou raízes nas montanhas de Minas Gerais, eu automaticamente e sem questionamento aderi aos seus preconceitos.
Desde 1373, pelo Tratado Anglo-Português, os portugueses se aliaram aos ingleses, geralmente contra os franceses e espanhóis. Somente a partir de 1808 os estrangeiros foram autorizados
a entrar abertamente na colônia brasileira, e especialmente na região de ouro e diamante de Minas Gerais, que era uma área particularmente proibida aos forasteiros. Era, portanto, natural que os únicos estranhos aceitáveis
para as velhas famílias de mineiros fossem os ingleses.
Os italianos chegaram ao país no final do século 19, a princípio como trabalhadores
manuais, de modo que não tinham, a princípio, a estatura social das famílias há muito ali estabelecidos. Sem surpresa, meu pai franziu a testa para o meu relacionamento com uma família italiana, embora ele nunca tenha dito
nada diretamente a respeito disso. No entanto, ele me citou o infame ditado: quando um italiano nasce, a criança é jogada contra uma parede. Se grudar, tudo bem, e se não grudar, será um ladrão.
Em um país como o nosso, formado por pessoas de todo o mundo e por inúmeras etnias, o preconceito é absurdo, e é, por definição, a consequência
de opiniões formadas sem pensamento ou lógica conscientes. Com o tempo, a posição dos imigrantes mais recentes mudou. Os italianos ganharam estatura e muitas vezes fizeram fortunas, e a maioria dos outros europeus casou-se com famílias
portuguesas.
Minha mãe era de uma família anglo-portuguesa, minha irmã casou-se com uma família com um sobrenome espanhol, meu irmão
com uma família alemã-portuguesa e eu, depois de anos de casamento com um britânico-grego, finalmente abracei uma família de ascendência francesa. No entanto, depois de chegar à Inglaterra, tornei-me uma anglófila
e, consequentemente, um pouco francófoba.
Quando conheci os gregos, eu não tinha conhecimento prévio deles, pois não estavam presentes
no meu país de origem em números grandes o suficiente para adquirirem uma reputação. Em decorrência disso, eu mesma tive que aprender sobre eles, e percebi rapidamente seus vários preconceitos, que só comecei
a entender quando estudei a história da civilização bizantina. Os preconceitos das pessoas são invariavelmente influenciados por sua história.
Embora eu tivesse conhecido um grego-americano na universidade, não tive tempo de aprender nada sobre eles como um grupo cultural. Mas em Londres, porém, depois de conhecer Edward Anglikis Malamos, eu teria tempo suficiente para isso,
pois nosso relacionamento duraria muitos anos. Os Malamos são uma família grega que trabalham principalmente no ramo de transporte marítimo, e com fortes conexões com o Reino Unido e a Suíça. Um dos primeiros notáveis
entre eles, Basil Manuel Malamos (1901-1979), era descendente de uma longa família de armadores. Ele se mudou para a Inglaterra no início dos anos 1920, onde, com seus primos, os Kulukun, desenvolveu a marinha mercante grega. E se casou com
uma inglesa e eles tiveram dois filhos, Nicholas e Manuel Basil, geralmente conhecido por seu apelido Bluy.
Bluy, conhecido principalmente por sua vida social
internacional, casou-se quatro vezes e teve quatro filhos. No início dos anos 1970, ele se mudou para a Suíça, de onde continuou a administrar sua empresa. Um de seus dois filhos com uma esposa nascida no Mexico, Nicholas, se tornou centro
das atenções quando se casou com a atriz conhecida. Seu irmão, Basil Carlos (1958-1998), foi educado em Eton e Harvard, e tornou-se jornalista profissional. Mais tarde, ele se converteu ao Islã, mas em 1998 morreu no Paquistão
enquanto representava em uma rede de televisão comercial americana.
No final do século 19, outro ramo da família Malamos se havia estabelecido
no norte do Egito, que era então parte do Império Otomano. Este foi um ponto estratégico na rota comercial entre a Europa e a Ásia, que, em 1869, com a abertura do Canal de Suez, ganhou grande exposição à cultura
ocidental. Muito em breve, porém, o seu alto nível de gastos levou o governo egípcio à falência, resultando no controle externo das finanças locais, o que novamente causou um influxo adicional de administradores europeus.
E isso apenas inflamou a situação já tensa, com demonstrações em Alexandria, causando a morte de muitos residentes europeus. Após a Primeira Guerra Mundial, no entanto, o Egito finalmente conquistou a sua independência.
Esquerda: gravura antiga do Canal de Suez. À direita: mapa do Canal de Suez.
A vida naquela parte do mundo na época é descrita por Lawrence Durrell em seu Quarteto de Alexandria, uma tetralogia de romances
publicados entre 1957 e 1960. Neles, Durrell relata as histórias de Justice, Balthazar, Mountolive e Clea, por meio dos quais vislumbramos uma mistura cultural de gregos, persas, romanos, árabes, otomanos e outros nacionais que então moravam
na região. Mas esse era um mundo condenado. Após outra Guerra Mundial, Gamal Abdel Nasser liderou o país em uma revolução que mudaria completamente, e para sempre, a vida naquele país.
O Papu de meus filhos, ou vovô em grego, Basil Malamos, nasceu em Port Said, mas durante a Segunda Guerra Mundial ele morava no vilarejo de Bray Upon Thames, no condado inglês de Berkshire.
Durante esse conflito, a Suíça, país totalmente sem litoral, foi forçada a criar uma frota mercante. E aproveitando a oportunidade, Papu fundou uma companhia de navegação e comprou um navio, renomeado Maroud, que navegou
sob bandeira suíça.
Após a guerra, Basil e sua esposa Elaina Anglikis se estabeleceram em Londres, onde ambos os filhos, Edward e Mariel,
nasceram. Mas logo os pais optaram por enviar seus filhos para a escola na Suíça. As lições da guerra nunca eram esquecidas e todos os que tinham algum um vínculo com os países neutros, como a
Suíça e Portugal, estavam determinados a manter vivo esse importante relacionamento.
Edward me contou que ficou aterrorizado durante seus primeiros dias na escola na Suíça, por não falar uma palavra sequer de francês. Mas, com o passar do tempo, ele superou esse obstáculo e, na adolescência,
foi matriculado no L'Institut Le Rosey. A sede desse internato fundado em 1880 funciona no Château du Rosey, prédiodo século 14, situado em Rolle, adjacente ao lago de Genebra. A escola também possui um campus
em Gstaad, onde passam os meses de janeiro a março para que os estudantes possam esquiar, que é o esporte nacional suíço.
A maioria
dos estudantes do Le Rosey são filhos de famílias ricas de todo o mundo, entre as quais, nas décadas de 1950 e 1960, havia muitos americanos, italianos e gregos. Em 1965, o então diretor da escola Louis Johannot, em uma
entrevista à “Life Magazine”, fez um comentário que despertou considerável atenção: "A única razão pela qual eu sempre tento conhecer e me informar melhor sobre os pais é para me ajudar a
perdoar seus filhos."
Pode-se dizer que meu eventual encontro com Edward Malamos foi uma consequência natural de frequentarmos os mesmos lugares e conhecer
as mesmas pessoas. Eu agora acredito que o que nos atraiu um pelo outro foi que, em muitos aspectos, éramos muito parecidos – ambos fortes e auto-opinativos. Mas ele inicialmente entrou na minha vida como uma arma de destruição,
que usei para encerrar um relacionamento anterior, enquanto eu era para ele não mais do que um meteoro em voo.
Em agosto de 1974, não muito tempo
depois de nos conhecermos, viajei com ele para Saint Tropez, onde ficamos um mês como hóspedes de Ariadne Pandel, irmã de um de seus melhores amigos, Basil Pandel. Do meu ponto de vista, essas foram umas férias extremamente entediantes,
com rotina imutável de sairmos para almoçar e jantar, e depois para uma boate, todos os dias. Nada mais. Sem passeios, sem praia e, pior ainda, sem tempo para silêncio e contemplação tranquila.
De volta a Londres, por falta de algo melhor para fazer, eu me matriculei em um curso de curta duração no Inchbald Schooll of Interior Design, que foi fundado em 1960 por
Jacqueline Duncan Inchbald. A escola era localizada na 7 Eaton Gate, e os programas oferecidos consistiam em um curso de um ano, com orientação profissional, e outro de dez semanas, para diletantes como eu.
Lá, conheci brevemente a irmã de Edward Malamos, Mariel, que cursava o programa de um ano. E, em meu próprio curso, conheci Minal Aswani, uma jovem indiana bonita e sofisticada.
Minal, que em cada dia de aula usava um conjunto diferente de belas joias para combinar com sua roupa, morava com os seus pais na elegante Grosvenor Square, em Mayfair, onde igualmente moravam os pais de Edward, e se localizava enfrente a Embaixada Americana.
No final daquele ano, juntamente com Edward, Mariel e seu amigo Angelo Econom, partimos em viagem ao Japão, para
presenciarmos o lançamento de um navio da família Econom. Depois de Tóquio, fomos a Hiroshima, onde a cerimônia de lançamento seria realizada, e do Japão voamos para Bali. Ali onde nos hospedamos no Tanjung Sari, como
visto na foto, um agradável hotel de estilo balinês, em Sanur.
Eu já estava então cansada do constante humor cínico
de Edward e de suas discussões intermináveis com sua irmã. Disse-lhe, portanto, que não os acompanharia a Bangcoc, onde ele queria ter vários tipos de massagens 'especiais', seja lá o que isso era. E assim anunciei
que iria diretamente de Bali para Bombaim a fim de visitar minha amiga Minal, que me convidara para hospedar na casa de seus pais.
Paul Theroux, em seu livro
Dark star safari, diz: "O melhor tipo de viagem é o desconhecido. Ou um salto no escuro. Se o destino é familiar, qual é o sentido de ir até lá?” E minha experiência como hóspede de uma família
indiana para as festividades do final do ano de 1974 foi um salto extraordinário a um mundo exótico.
O Taj Mahal Hotel, em Bombaim, decorado para o final do ano.
Esta é a estação em que muitos indianos internacionais convergem
para seu país de origem, que ganha vida com uma sequência de festas culminando, para mim, em uma recepção fabulosa na véspera de Ano Novo no palácio de um marajá. Na casa de Minal, conheci o resto de sua família
e, depois das festividades, fui com sua irmã Divia a um Ashram fora da cidade para uma semana de distanciamento do turbilhão social. Com o passar dos anos, perdi contato com Minal. Ela se casou primeiramente com Jack Sagrani, cuja família
tinha negócios na Nigéria, e tiveram uma filha. Algum tempo após o término desse casamento, Minal conheceu e se casou com Lalit Modi, chefe de importante conglomerado familiar.
Voltando a Londres no início de 1975, não consegui encontrar mais desculpas para prolongar minha estada no Reino Unido. E então voltei a Belo Horizonte com a intenção de me unir
ao meu irmão e irmã nos escritórios da família. Contudo, a pessoa que lá chegou não era mais a pessoa que havia partido vários anos antes. A cidade e as pessoas também já não eram os mesmos.
Tudo havia mudado. A minha casa era sempre agradável para mim, quando eu lá passava férias nos dez anos em que morei fora, provavelmente porque sabia que logo iria novamente embora. Mas quando eu pensei em lá morar arrodeada por
aquelas montanhas, entre as pessoas com quem eu agora tinha muito pouco em comum, e que viviam sob uma pesada nuvem depressiva, a ideia tornou-se angustiante. Após anos morando fora de casa, eu pedi se podia ter um apartamento para mim, mas a ideia
não foi levada a sério.
Eu tinha muitos primos em Belo Horizonte, dos quais eu gostava muito, mas logo descobri que nos anos 1970 minha geração
parecia ter passado por momentos traumáticos. Uma das minhas primas favoritas da infância, Helena, que era relacionada a mim pelo lado de meu pai, havia mudado tanto que, às vezes, eu achava a sua presença desagradável. Rubem
Dario Bittencourt, primo da família de minha mãe, havia sido um artista de sucesso e companheiro meu nas vezes em que eu ia ao Rio. Ele havia retornado a Belo Horizonte e passava por um período desesperado de decadência. E muitos
de meus outros primos tinham se casado e agora viviam vidas muito diferentes da minha.
Embora eu sonhara trabalhar com meu pai, nos últimos anos havia
notado nele mudanças de atitude muito difíceis de entender. Ele estava então frequentemente irritado e sempre crítico de tudo, e nós não tínhamos mais nada em comum. Também recentemente ouvira outra vez
histórias sobre a outra vida de meu pai, e preferia continuar distante desse mundo estranho e de seu escritório que via como feio, desorganizado e amedrontador. Eu absolutamente odiava ir lá.
Disse então ao meu pai que gostaria de trabalhar em nosso pequeno banco familiar. Imaginei que seria uma experiência de longo aprendizado, longo, mas interessante, e que eu, ali, estaria mais segregada
da agitação do escritório principal, que eu tanto detestava. Mas meu pai disse que eu não sabia nada sobre bancos, o que era verdade. De todos os modos, eu também nada sabia nada sobre imóveis ou sobre o negócio
do açúcar – e, então, que diferença faria? Sentindo-me muito deprimida, eu me retirava para a solidão no meu quarto e lia a maior parte do tempo. Esse impasse durou alguns meses. Como nenhum de nós dois cedeu,
um dia fui para o Rio, meu eterno refúgio, onde podia descansar e pensar sobre o que fazer.
Minha família tinha um apartamento de férias
com vista para a Praia de Copacabana, onde nós sempre passávamos os recessos escolares do meio do ano. Como minha mãe possuía primos morando no Rio, ela gostava muito de ali passar a temporada. E aquela, com certeza, era a
época mais agradável do ano, quando a temperatura na cidade estava quase perfeita. Eu não conhecia muita gente, mas meu primo Antônio Manuel Luciano Pereira, que morava lá, foi muito útil. Ao chegar, na segunda metade
de 1975, ele me apresentou a uma amiga dele chamada Cecília Bernardes. Ela também era mineira e nos tornamos amigas.
As poucas outras pessoas que
eventualmente conheci no Rio pertenciam ao contingente inglês local, que geralmente convergia nos fins de semana para a praia de Búzios, para a casa de uma de suas famílias. O único deles que vi novamente fora do Rio foi Edward Hoare,
quando nos encontramos em Londres, onde também conheci sua irmã Audrey e seu primo Richard Hoare. A família deles é dona do Banco Hoare, fundado por seu ancestral Richard Hoare, em 1672.
Mas, voltando a essa época no Rio, quando meu pai sugeriu que eu consultasse um psicanalista local que havia sido recomendado por um amigo, fiquei feliz em aceitar. O Dr. Santos
atendia seus pacientes em consultório no seu próprio apartamento, em um prédio ao lado do Morro da Viúva, no Flamengo. Dali, tinha-se uma vista esplêndida do Pão de Açúcar e dos pequenos bondinhos pendurados
num cabo, em subida e descida. Além desse cenário tão conhecido, que eu costumava contemplar, havia ainda a passagem dos aviões depois que decolavam do aeroporto Santos Dumont. Eles voavam da esquerda, viraram e logo seguiam em
direção ao mar aberto. Com o passar das semanas, contei ao Dr. Santos meus pensamentos e meus problemas, falando sobre meus estudos em Boston e minha vida na Inglaterra, bem como as razões pelas quais eu não queria morar em Belo
Horizonte.
No início de 1976, minha avó materna Teresa, que eu via como uma das poucas pessoas da família que ainda se mantinham emocionalmente
de todo sã, teve um derrame e morreu. Mesmo aos 93 anos, ela era a minha maior fonte de apoio, e fiquei arrasada com a morte dela. E depois disso não queria mais permanecer no Brasil. Meu pai ficou em estado de absoluta fúria, mas minha
mãe, sempre inquestionavelmente amorosa e solidária, logo encontrou uma maneira de me enviar dinheiro para comprar um apartamento em Londres. Mais de dez anos depois, muito tempo após a sua morte, meu irmão me disse, como já
contei páginas atrás, que o dinheiro enviado era dele, e que foi minha mãe quem ordenou que ele assim o fizesse.
Quando voltei para Londres
no segundo semestre daquele ano, senti-me completamente vazia, sem direção ou propósito na vida. No passado, eu havia recusado o casamento e adiado o nascimento de filhos porque não queria que nada interferisse nos meus sonhos profissionais.
Mas agora, que decidira não trabalhar mais com meu pai, o que me restava? E então, como se por mágica ou traquinagem, meu relacionamento com Edward Malamos reiniciou-se. No entanto, isso só me trouxe desespero, porque eu já
sabia que ele nunca seria uma pessoa gentil. É certo que tentei me afastar dele, mas no desânimo em que me encontrava era difícil fazer qualquer coisa.
Com a ideia de me tornar financeiramente independente de meus pais, decidi que precisava encontrar um trabalho. Eu estava munida de um diploma de Administração de Empresas de uma Universidade Americana, falava várias línguas,
mas não tinha experiência profissional, então me matriculei em cursos no City-Lit num esforço de aprimorar minhas habilidades de secretariado. Lembro-me de um dia em que andei desanimada por uma rua de grande movimento quando
vi numa vitrine de loja uma oferta de testes psicológicos gratuitos para transeuntes. Entrei e decidi tentar, descobrindo que se tratava da igreja de Scientology. Eu participei disso por muito pouco tempo, e logo, com a minha teimosia habitual,
estava em desacordo com eles.
Eles me disseram que eu tinha que desistir de qualquer medicamento
que estava tomando e questionei a autoridade deles no campo da medicina. Também me opus à natureza repetitiva de algumas de suas atividades e disse-lhes que não participaria delas porque acreditava que tais tarefas eram projetadas para
o domínio da mente. Foi só muito mais tarde que um médico me disse que Scientology era vista por alguns como uma seita perigosa, com a intenção de controlar os mais frágeis e vulneráveis.
Minha próxima tentativa de recuperar estabilidade emocional foi oferecendo meus serviços voluntários à Cruz Vermelha Britânica. Durante algum tempo, realizei
tarefas administrativas em seus escritórios em Victoria, mas também me interessei pelo curso de Primeiros Socorros, que ensinava, entre outras coisas, ressuscitação boca a boca. Pouco tempo depois, na área de Worlds-End,
um homem velho desabou ao meu lado e eu instintivamente tentei ressuscitá-lo enquanto a ambulância estava a caminho.
Quando contei a Edward sobre
esse incidente, ele exclamou:
"Que nojento! Você realmente tocou a boca dele com a sua?
"Não", eu disse, "você coloca a mão no meio”.
Ele então comentou: “Isso ainda é revoltante
de qualquer maneira. Tenha cuidado ou você será recompensada por boas ações! ”
"Não se preocupe", respondi, "não
dei meu nome".
Mas acho que ele nem ouviu minha resposta, enquanto o som de sua risada alta reverberava pelas paredes de seu elegante apartamento em Grosvenor
Square. Não se podia vencer uma partida verbal com Edward Malamos, pois ele revelava seu próprio senso de humor. Eu tive que aprender simplesmente a não lhe prestar atenção.
Foi no início de 1977 que Jurek me telefonou e se apresentou como amigo da minha amiga Sylvia Hruska. Jerzy Stanislaw pod Gorsky, conhecido como Jurek, era originalmente do sul da Polônia, perto de
Cracóvia. Ele trabalhava principalmente como tradutor, assim como a Sylvia, e era uma pessoa gentil e doce, com sólida formação religiosa, diferentemente de mim, que sou cínica em assuntos espirituais. O que eu acho que nos
deve ter tornado tão próximos foi a falta de objetivo e o vazio de nossas vidas.
Enquanto isso, na minha luta para encontrar
trabalho, aprendi que as empresas inglesas não tinham interesse em estrangeiros. Consequentemente, redirecionei minha procura a empresas brasileiras que operavam em Londres. Por fim, encontrei posição no escritório de Londres da
Interbras, a divisão de importação e exportação da Petrobras, a companhia estatal brasileira de Petróleo. Aqui, minhas qualificações acadêmicas pelo menos ajudaram a justificar minha contratação,
já que eu havia me especializado em negócios internacionais e era fluente nos dois idiomas necessários para o meu trabalho. Dessa maneira, obtive minha permissão de trabalho na Inglaterra, tornando-me uma residente oficial do Reino
Unido. E assim comecei a cultivar minhas raízes locais.
Para se efetivar uma permissão de trabalho, deve-se deixar o país e nele entrar
novamente como residente. Eu tive que ir a algum lugar por um período mínimo de cinco dias antes de me apresentar no trabalho. Escolhi ir a Cancun no México, onde aluguei um carro e o dirigi, comemorando alegremente meu novo status
de residente oficial no Reino Unido, depois de dez anos como visitante residente.
Na Interbras, trabalhei como assistente do diretor comercial, Werner, que era
do Rio. Ele era sobrinho de um general, e durante a ditadura militar brasileira era útil ser ligado aos que estavam no poder. Todos os chefes desse escritório foram enviados da sede no Rio, independentemente de suas qualificações
e conhecimento de inglês, de modo que a equipe local fazia toda a redação necessária. Entrei em um mundo desconhecido e, pela primeira vez na vida, conheci mulheres que se sustentavam e a seus filhos por meio de seu próprio
trabalho. E achei isso fascinante.
A primeira pessoa no escritório que chamou a minha atenção foi a poderosa chefe de pessoal, Delfina Pinto.
Cometi o erro de usar um casaco de pele de coelho verde no meu primeiro dia, e vi, por sua expressão, que ela havia decidido não gostar de mim. Eu havia ofendido as suas sensibilidades sobre animais. Percebendo como ela poderia tornar a minha
vida um inferno, decidi conquistá-la. Para esse fim, tomei o cuidado de não reagir a nenhum comentário cortante que surgisse dela e de sempre respondê-la muito bem. A estratégia funcionou e até nos tornamos amigas.
Delfina era, na verdade, uma judia portuguesa, mas falava perfeitamente o português do Brasil, o que é incomum. Ela tinha uma filha pequena chamada Alia Sarah, fruto de um
relacionamento fracassado com um árabe. E Delfina vivia atormentada pelo medo de que o pai da filha tentasse tomá-la e levá-la embora; ou então tinha medo de morrer enquanto Alia Sarah ainda era pequena, e que o pai não se
importasse com a filha, deixando a menininha desamparada.
Havia outra jovem no escritório, cujo nome não me lembro, pois ela se transferiu para
outra empresa logo após a minha chegada. Ela absolutamente me surpreendeu. Alguns anos antes, escapara com seus três filhos pequenos de um casamento ruim no Brasil e chegara a Londres, onde prosperaram desde então. Tudo isso foi uma lição
de autoconfiança para mim, muito além de tudo que eu já havia visto antes, e minha própria independência se empalideceu diante dessas mulheres corajosas.
Outra pessoa interessante da Interbras era Marisa, com quem eu dividia um escritório. Ela era do estado do Amazonas e parecia ser da mais pura extração indígena. Ela casara-se com um inglês que havia
trabalhado naquele estado e fora com ele para a Inglaterra, onde nasceram os dois filhos, que por acaso tinham o colorido claro do pai. Ela me contou como muitas vezes notava a desaprovação das pessoas quando percebiam que ela era a mãe
das crianças. Marisa era excepcionalmente inteligente e na época também fazia estudos de pós-graduação. Ela também falava e escrevia três idiomas com perfeição.
Como boa parte dos meus colegas de trabalho, eu costumava criticar a maioria dos executivos indicados da sede, embora mantivéssemos nossos pensamentos em segredo. Mas minha reticência
não garantiu que eu permanecesse nas boas graças do próximo diretor da filial, Joseph Tutund, que decidiu cortar custos, demitindo alguns funcionários locais. Tendo percebido que isso deveria me incluir, reclamei com meu pai. Ele
telefonou para seu amigo Aureliano Chaves, o vice-presidente do Brasil, e expressou seu descontentamento pela maneira como sua filha estava sendo tratada no escritório da Interbras de Londres, considerando que ele empregava milhares de pessoas no Brasil.
Esperei para ver o que aconteceria, e um dia o Sr. Tutund me chamou em seu escritório e me disse que havia recebido uma ligação do Sr. Chaves a meu respeito, dizendo
que eu havia manifestado preocupação com o meu trabalho. Ele me garantiu que não havia ameaça à minha posição e me perguntou se eu estaria interessada em mudar para uma posição melhor em outro
departamento.
Durante esse período, o relacionamento infeliz com Jurek vacilou porque cada vez que Edward me telefonava para expressar sua preocupação
com o meu bem-estar, a chama que eu tentava extinguir era reavivada. E no primeiro semestre de 1979 eu e Jurek finalmente nos separamos. E depois que me desliguei da Interbras, tirei umas férias sozinha na África para esfriar a cabeça
antes de ir ao Brasil ver meus pais.
Durante esse período da minha vida, minhas viagens não eram para fins de turismo, mas para fugir. Eu estava
fugindo de mim mesma e da realidade de uma vida vazia. Nessa ocasião, voei inicialmente para Nairóbi, no Quênia, na África Oriental, com sua costa no oceano Índico. Os britânicos estiveram presentes no Quênia de
1895 a 1964, quando o país se tornou independente. Da capital Nairóbi, no centro do país, fiz um safári no Norte e depois passei alguns dias agradáveis na praia de Mombaça, onde me queimei demasiadamente no sol.
Voltando a Nairóbi, vi minha amiga Louise Foo e seu marido no Fairmont Norfolk Hotel, mas como não estava com disposição para me socializar, evitei-os.
Em seguida, decidi voar em direção ao oeste, para o Brasil, mas no caminho parei primeiro em Kinshasa, no Zaire, agora conhecido como Congo. Este é o maior país da África Subsaariana, com uma economia dependente
da extração de petróleo, mas atormentada por problemas econômicos. A capital Kinshasa, às margens do rio Congo, foi anteriormente conhecida como Leopoldville, por ter sido uma colônia belga de 1908 até sua independência
em 1960. Foi tolice minha me aventurar a esse país. E assim que cheguei ao aeroporto no final de uma tarde, pude sentir o perigo no ar e ver claramente o ódio nos olhos dos locais.
Com medo de pegar um táxi sozinha para a cidade, olhei para os outros passageiros e aproximei-me de um homem de aparência inglesa, explicando-lhe o meu medo. Perguntei se eu podia dividir um táxi com ele. Disse-lhe
ainda que tinha reserva no hotel Hilton. Como ele não havia reservado hospedagem na cidade, comentou que tentaria a sua sorte lá também. Na chegada ao hotel, disseram-me não ter recebido a minha reserva. E que estavam lotados. O
meu companheiro igualmente não conseguiu obter um apartamento. Tentou então se comunicar com os contatos comerciais que tinha para obter ajuda, mas não conseguiu encontrá-los.
Olhando para a escuridão lá fora, decidi que não me aventuraria a lugar algum em busca de acomodação alternativa. Informei então ao recepcionista que nós dois passaríamos
a noite ali, uma vez que não tínhamos para aonde ir. E enquanto estávamos ali sentados e cercados por nossa bagagem, notei que o restaurante do hotel começava a servir o jantar. Sugeri então ao meu companheiro de viagem que
deveríamos comer separadamente, alternando-nos na vigilância das bagagens.
Era já mais de dez horas da noite quando vi passar um funcionário
do hotel carregando uma pequena bagagem, e olhar furiosamente na minha direção. Logo depois, o recepcionista me chamou e disse que de repente eles tinham um quarto para mim. Eu fiquei muito aliviada, mas, pensando no meu companheiro de infortúnio,
perguntei se esse era um quarto com duas camas de solteiro. O recepcionista disse que era. Perguntei ao meu companheiro aflito se ele gostaria de compartilhar comigo o único quarto disponível. Os sorrisos lascivos nos rostos dos funcionários
do hotel foram extremamente embaraçosos. Uma vez no quarto, nós dois, estranhos, mudamos de roupa decorativamente no banheiro e logo caímos em sono exausto. Na manhã seguinte, ele conseguiu localizar os seus contatos de negócios
e foi encontrá-los. Eu fiquei mais uma noite no hotel. De minha parte, depois de uma rápida visita guiada à cidade, voei para Libreville, no Gabão, na costa atlântica.
Embora essa costa já tivesse sido o centro do comércio de escravos, a capital deve seu nome ao fato de ter sido ocupada por escravos libertos a partir de 1849. De 1839 a 1960, foi primeiramente um
protetorado e depois parte da África Equatorial Francesa. Eu tive uma estadia agradável em Libreville, onde fiz amizade com um belga que trabalhava no hotel. Ele me contou que o hotel havia hospedado recentemente uma Convenção dos
Estados Africanos, e na sua partida os hóspedes levaram tudo o que cabia em suas malas, incluindo acessórios metálicos de banheiro!
Douala,
nos Camarões, foi minha próxima parada, localizada apenas do outro lado do golfo da Guiné. Colônia alemã de 1884 até depois da Primeira Guerra Mundial, o país foi dividido entre a Inglaterra e a França
até 1960, quando os Camarões franceses se tornaram independentes, e os Camarões ingleses do Norte se juntaram à Nigéria. Aqui, o petróleo também é o maior produto exportado, mas o progresso econômico
é dificultado pela corrupção e, consequentemente, o país é atormentado por uma alta taxa de pobreza. Como não vi nada de interessante em Douala, fui rapidamente para Lagos, na Nigéria.
A Nigéria é um país grande, com uma população de mais de 190 milhões, 50% dos quais são muçulmanos, e o idioma oficial é
o inglês. O petróleo fornece 95% de seus ganhos cambiais, mas o país é dominado pela corrupção política. Lagos, com seus 21 milhões de habitantes, está situada na costa e luta para fornecer serviços
básicos à população. Embora sua história remonte a habitantes pré-históricos na área desde 1100 AC, esteve sob o domínio britânico de 1800 a 1960. Nesse período, outros europeus investiram,
se estabeleceram e fizeram fortunas na região, entre gregos e libaneses.
Em nenhum lugar do mundo eu testemunhei tanto caos quanto em Lagos. Absolutamente
nada funcionava. Isso foi muito antes da criação da Internet, e a comunicação dependia quase exclusivamente do telefone, mas estes não funcionavam, portanto, as agências de viagens ou as companhias aéreas não
podiam fazer reservas. E o tráfego por suas ruas, considerado um dos piores do mundo, estava em quase constante paralisação.
Eu havia reservado
um hotel de cinco estrelas que provou ser horrível. Mas, uma vez hospedada, ouvi dizer que o novíssimo Holiday Inn era o melhor da cidade. Imediatamente me mudei para lá. Incapaz de reservar um voo para o meu próximo destino, Abidjan,
eu compartilhei um táxi para o aeroporto uma manhã com um libanês que conheci no hotel, para ver se conseguiríamos assentos em um avião que partia naquela mesma tarde. No aeroporto, todos tinham que gritar para conseguir lugar
em uma aeronave. Eu consegui, mas só tive certeza de que nada mais daria errado quando o avião finalmente decolou!
Abidjan, um porto marítimo,
é a capital econômica e a maior cidade da Costa do Marfim. Governada pela França de 1880 a 1960, quando se tornou independente, foi até o golpe militar de 1999 conhecida como uma economia bem desenvolvida, baseada em seu setor agrícola
e pela harmonia religiosa e étnica. Considerada a Paris da África, era um lugar agradável na década de 1970, para meu grande alívio! Passei alguns dias amenos e descansados lá antes de ir para o Senegal, de onde
voaria para o Brasil no supersônico Concorde.
As inscrições encontradas em escavações arqueológicas, principalmente
em árabe, indicam que o Senegal foi povoado por migrantes que chegaram da parte norte do continente. E situado em uma localização estratégica do ponto de vista comercial, foi governado por várias nações africanas
e depois por várias potências europeias até 1850, quando os franceses aí estabeleceram seu domínio.
Isso durou até 1960,
com o advento da independência, que libertou muitas outras nações africanas. O Senegal ganha a maior parte de suas divisas com peixes, amendoim, fosfato e turismo. A capital é Dakar, uma cidade movimentada, de onde eu logo voei para
Cap Skiring, no Sul, que é um local de férias idílico, com praias amplas, palmeiras e muitos hotéis agradáveis. Esta foi a última parada na minha peregrinação africana, a minha fuga antes que eu tivesse
que enfrentar novamente a vida real.
Na minha chegada a Belo Horizonte, encontrei uma carta
de Edward Malamos expressando sua preocupação e pedindo notícias. E assim que voltei a Londres, o inevitável aconteceu. Nós voltamos a sair juntos. Nessa época comecei a trabalhar para uma empresa de importação
e exportação, a Canasta Ltda, de propriedade de Pedro Alves, um amigo português. Essa companhia, entre outros contratos lucrativos, fornecia cerâmica portuguesa à Marks & Spencer.
Estava eu manifestamente enfeitiçada a ponto de não conseguir me manter longe do infernal Malamos? Por que eu não havia percebido como me havia tornado semelhante
a ele? Ou eu sempre fui? Embora eu esperasse encontrar alguém que ocupasse o seu lugar, minhas tentativas foram, na melhor das hipóteses, fracas, pois encontrei repetidamente falhas em todos que conheci. A verdade é que éramos duas
pessoas cruéis na defesa de nossas próprias escolhas e, como resultado, nos merecíamos. Fazia 8 longos anos desde nosso primeiro encontro e nada havia mudado. Sempre foi apenas um relacionamento social, embora insatisfatório do
meu ponto de vista, mas não realmente diabólico.
‘E durante esses anos, Anastásia manteve um certo controle
sobre sua vida e suas escolhas. Uma casa além da dele era um abrigo longe do inferno; as suas férias separadas eram a recusa em descer às profundezas de seu submundo, mas ela não conseguia deixá-lo. Do ponto de vista dele,
uma sequência monótona de dias e noites vividas sem emoção era imensamente satisfatória. Por mais que Malamos não precisasse mudar e não sentisse amor, a filha de Antônio Zeus não sabia como desistir.
Finalmente chegou o dia quando Edward Malamos assumiu seu papel de Hades, o poderoso rei do submundo, e através de sua contínua aliança ela se tornou sua Anastásia Perséphone.’
Mas já havia passado muito tempo nesse dilema, e eu estava preocupada que meus hormônios não pudessem esperar muito mais, então finalmente decidi agir, tomar
o destino em minhas mãos e me salvar de um destino infrutífero. Mefistófeles encontrara o seu par!
Xena Olympia entrou em nossas vidas e,
três anos depois, Michael Perseus fez sua entrada no mundo, e ambos tinham os belos olhos azuis escuros de seu pai, de tom encontrado nas profundezas dos oceanos. Hades e Perséphone ainda por muitos anos continuaram a sua insatisfatória
vida emocional.
Novas Raízes
Perdi minhas raízes
Do solo das origens
Até pouco restar
Para s alma sustentar.
Sem família estando
Encontrei-me flutuando
Árvore sem estirpes,
Sem frutos ou sem flores.
Sem âncora no exílio,
Sem berço
para auxílio,
Para os dias me firmarem
Até os filhos chegarem.
Amor por eles se tornou
Elo profundo, se formou
Criando conexão
Ausente até então.
Meu tronco tão sofrido,
Sem solo apoiado,
Agora respirou,
Floriu e acordou.
As suas ligações,
A mim legações,
Para eu pertencer,
E com raízes renascer.
© A.L.P. Gouthier.
Esquerda:
Perseus, Clara Deméter, Anastásia e Xena à direita.
Coleção de fotos de A.L.P. Gouthier. Centro: provérbio
malaio.
Direita: Perseus e Xena no Brasil. Coleção de fotos de A.L.P. Gouthier
A palavra raiz tem muitos significados. Pode significar a parte de uma planta que transporta água e alimento ou ser a parte
incorporada de um órgão ou estrutura corporal, ou ainda a parte de uma coisa que a anexa a um todo maior e mais fundamental, bem como a causa, fonte, ou origem de alguma coisa, a base e fundamento, o núcleo, o coração e a
essência. Consequentemente, a raiz de um problema geralmente faz parte da solução para ele.
Através dos meus filhos de uma família
europeia, desenvolvi raízes na Europa e isso me deu uma razão para ali estar, que nada mais poderia ter-me dado. E esses filhos preciosos se tornaram minha salvação de uma vida vazia, faróis de luz para guiar os meus dias,
imersão em uma forma de amor ainda desconhecida, felicidade suprema em um mar de medo, uma âncora em um mundo estranho – e minhas novas raízes.